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VIII Simpósio

Expressões do inconsciente
5 de novembro de 2010

 

A busca do inominável e do incognoscível em Clarice Lispector e Jung

Carmem Marques

Sou uma leitora de Clarice Lispector, não uma estudiosa da sua obra, mas me deparei inúmeras vezes com a proximidade entre o que Clarice escreve e o que vivencio na clínica, em nosso trabalho. Acho que isso enriquece muito o nosso trabalho como analistas. Então, a minha proposta hoje é trazer uma reflexão sobre algumas das aproximações que percebo entre a obra de Clarice e a de Jung e sobre as várias possibilidades de compreensão das obras de ambos. Vou apresentar aqui “A mística em Clarice e em Jung”, chamando de mística a essa busca pelo inominável e pelo incognoscível. Para esta reflexão destaco, na obra de Clarice, o livro A paixão segundo GH e, em Jung, a última etapa da sua obra, em que a ênfase está no aspecto incognoscível e autônomo dos conteúdos do inconsciente, bem como as reflexões mais tardias sobre o arquétipo do Si-mesmo, quando sua obra ganha um caráter mais pessoal e biográfico.

Proponho a seguinte indagação: quantas vezes já fomos arrebatados por experiências que nos colocaram diante de um fascinante e terrível encontro com o até então desconhecido em nós? Sinto, por experiência própria e de meus pacientes, que quando esse encontro arrebatador acontece nossa consciência transborda de novos sentidos, redefinindo e alterando o rumo de nossas vidas que pareciam caminhar sobre trilhos. São fragmentos do inominável e do incognoscível que atravessam nossas vidas e se dão a conhecer, verdadeiras emanações do Self. Somos tocados por algo que não somos capazes de compreender, mas que nos abre para novas possibilidades de resignificar os acontecimentos do cotidiano, dando a eles um sentido que transcende o fato de viver. Compostos de criatividade brotam desse fundo obscuro, produzindo imagens, palavras, sentimentos e ideias que possibilitam uma aproximação do nosso eu consciente com o mais profundo e desconhecido em nós.

Somos arrebatados por essas experiências. Pessoas como Clarice e Jung vão mais longe e estão continuamente abertos para esses instantes e prontos a provocar naqueles que os leem o inédito dessas vivências. Sigamos, então, tendo em uma margem A paixão segundo GH, obra de Clarice que se desdobra em uma via mística de sacrifício e revelações e, na outra, Jung e o momento místico e religioso, ultima etapa de sua obra. Para acompanhar a ambos nessa jornada é preciso coragem para caminhar em direção ao desconhecido, suportando o risco da descida que nos coloca diante do mais profundo e misterioso em nós.

Caminhando primeiramente com Clarice, devemos observar a seguinte ressalva com que ela inicia A paixão segundo GH: “Este livro é como um livro qualquer, mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada, aqueles que sabem que a aproximação do que quer que seja se faz gradualmente e penosamente, atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”. O livro é escrito na primeira pessoa como um relato da experiência vivida há poucas horas pela personagem G. H. que se dirige a um interlocutor imaginário, procurando entender a aterrorizante experiência de ser arrastada ao espaço do desconhecido e resistir ao contato com o que não tem forma nem nome.

G. H., uma mulher de classe social elevada, um dia após a demissão da empregada resolve limpar a casa e começa pelo quarto dos fundos. Quando adentra o quarto da empregada, esperando encontrar o caos, depara-se com um ambiente limpo e arejado e o contorno inusitado de um desenho a carvão, na parede, de um cão, um homem e uma mulher com quem G. H. se identifica. Pela primeira vez, vive a experiência de se sentir vista pelo outro, em uma objetivação de si mesma. A percepção da diferença entre eu e o outro atinge seu ponto máximo diante do encontro com a grossa e axiológica barata que surge de dentro do armário e que é esmagada até expelir sua massa densa e branca, que mais tarde será ingerida por G. H.

Durante todo esse percurso, a personagem narradora nos relata a sua via crucis, quando vive a desconstrução de sua persona, sua desumanização, o encontro com o núcleo da existência e, por fim, o renascimento em relação a si mesma, ao mundo e a Deus, embora sem entendimento do ocorrido. Da experiência de radical alteridade vivenciada no duelo de olhares entre ela e a barata, até a descoberta de que ser é ser além do humano, como nos disse G. H., através da personagem que nos pede a mão para acompanhá-la, somos levados a cruzar um caminho de desconstrução e despersonalização de nossa própria identidade.

Após a desconstrução do nosso eu, quando perdemos tudo o que se pode perder e continuamos sendo, o próximo passo é envolver-nos com o nosso próprio invólucro coletivo, para então reconhecer-nos a nós mesmos no outro. Depois do desmonte da persona, G. H. atinge a camada coletiva, tocando o vazio, para só então renascer transformada. Inquietos pela leitura, atravessamos de mãos dadas com ela nossos labirintos internos, repletos de curiosidade, espanto e terror.

Quem se aproxima da obra de Jung sabe que também essa obra era uma busca pelo desconhecido, busca incessante pelo incognoscível que nos invade, contendo o sentido consciente, coletivo e convencionado, e que nos aproxima do mais profundo e central em nós. Uma experiência fascinante ou terrível para a psique, dependendo de nossa postura diante do mistério e de suas emanações, já que nenhuma resposta da ciência, da razão, nenhuma linguagem é capaz de dar conta e esgotar todo o sentido que brota do inconsciente e busca expressão. É um mistério que não se decifra e quer se expressar.

A característica que melhor define a última etapa da obra de Jung e se aproxima da mística em Clarice é essa relação entre o inconsciente como instância psíquica superior, em si desconhecida ou conhecida apenas indiretamente por meio de imagens e analogias que se manifestam e se impõem a uma consciência passiva, ao mesmo tempo fascinada e terrificada. É o momento das reflexões mais tardias de Jung sobre a constelação dos arquétipos, especialmente do Si-mesmo. Para situá-los, a última etapa da obra de Jung a que me refiro baseia-se na divisão em três etapas da sua obra propostas por Ulianov Reisdorferem, em Ciência, estética e mística: modelos na psicologia analítica, e por Amnéris Maroni, em seu livro Eros na passagem, e corresponderia ao modelo místico e religioso.

Resumidamente, a primeira fase da obra de Jung se caracterizaria como um modelo científico e corresponde ao período anterior ao rompimento com Freud, onde a preocupação de Jung era tornar a psicologia uma ciência com uma base mais objetiva. Após o rompimento, embora a psicologia analítica se mantenha dentro dos critérios da cientificidade, é o modelo estético que se instala no setting terapêutico, quando é devolvida ao paciente a capacidade de mitologizar, de criar e viver imagens, momento em que é dada primazia à fantasia criativa. Mais tardiamente é que o aspecto místico da obra de Jung ganha maior contorno, quando ele encontra nos textos alquímicos as bases históricas para suas premissas e experiências (embora esse aspecto já estivesse presente em Jung desde sua infância, quando estava sempre atento para suas fantasias e sonhos iniciais, fazendo deles matéria prima para toda a sua vida).

No capitulo “Confronto com o inconsciente”, em Memórias, sonhos e reflexões, vamos encontrar Jung descrevendo a descida à profundeza de si mesmo para apreender as fantasias que emergiam do inconsciente. A ousadia e a maneira de se abandonar à queda até atingir o que ele chamou de “caverna obscura”, o medo de perder o autocontrole e se tornar presa do inconsciente, a coragem de ali permanecer até emergir transformado pelas imagens produzidas por esse encontro, guardam grandes semelhanças com a descrição da via crucis da personagem narradora G. H. até a sua transformação após o retorno do profundo abismo onde estivera.

Como Clarice e Jung souberam enxergar nas experiências emocionais vividas algo além, invisível e irrepresentável? Outro ponto de convergência se destaca. Com base na diferenciação dos modos de ser do homem na atualidade, colocados por Gilberto Safra em Hermenêutica na situação clínica,¬ afirmamos que ambos se caracterizariam como “pessoas abismais”. Diz Safra: “os abismais são profundamente lúcidos em relação ao registro ontológico da condição humana e dizem o inédito, vivem frente ao irrepresentável sem negação e são capazes de assinalar aquilo que é fundamental na experiência humana”. As pessoas abismais diferenciam-se das pessoas bidimensionais que são aquelas que vivem como se não tivessem interioridade, nas quais as metáforas se perdem. Colocam a ênfase no registro representativo e operam pela lógica racional. Também se diferenciam dos tridimensionais que, embora se enraízem em sua interioridade em determinadas situações, privilegiam sua vida habitual no cotidiano.

Ao contrário desses dois tipos, as pessoas abismais como Clarisse e Jung estão sempre em contato com as questões originais do ser humano, tocando o mistério da existência e, ao transcenderem o fato vivido, conseguem expressar a perplexidade dessas experiências. As formas de expressão que encontramos em Clarisse e Jung são ferramentas para nossa tarefa clínica. A capacidade de se surpreender com pequenos fatos do cotidiano e, a partir deles, buscar o sentido e o significado de nossa existência humana e, mais do que isso, a capacidade de comunicar essa experiência através da literatura, da teoria, nos abre para nossa própria experiência e a de todos os outros.

Para aqueles que nos buscam com a visão bidimensional sobre a existência, nossa tarefa clínica é ajudá-los a metaforizar, criar caminhos para uma interiorização e compreensão sobre suas atitudes e seus sentimentos inconscientes. É fazer alma. Para os tridimensionais, que são arrebatados por experiências emocionais que os colocam diante do desconhecido sem representação, nosso oficio como analistas é ajudá-los nessa passagem e no trânsito entre o mundo interno e externo, para que possam retornar transformados e transformando a sua vida e modos de ser no cotidiano.

Para pessoas abismais como Clarice e Jung, a busca é o caminho, sempre atentos que estão para aquilo que é fundamental para a experiência humana, abertos para imagens de fantasia que brotam do inconsciente através de gretas, buracos, vazios e erupções abundantes de insights. Nossa delicada tarefa é testemunhar sua singularidade e nos abrirmos para uma escuta dos mistérios da vida, como expressão do inédito daquilo que dizem. Com eles alargamos a nossa consciência e a deles quando aceitamos simplesmente o indizível e incompreensível em nossas vidas.

Depois de atravessarmos com Clarice e Jung a nossa própria discussão, somos capazes de caminhar com aqueles que nos procuram quando se veem diante do abismo de sua existência, buscando sentido e significado para suas vidas. Nossa tarefa é muitas vezes apenas acompanhar, outras vezes conduzir. Também nós, analistas, devemos procurar tocar o mistério da nossa existência, aceitando humildemente o indizível e o impalpável que mais se dá a conhecer e se revela quanto mais buscamos formas de expressá-lo. E, assim, entre mais semelhanças e aproximações, vamos atravessando nosso próprio caminho em uma tentativa de encontrar uma linguagem capaz de traduzir, pelo menos em parte, a superabundância de sentidos que emana do inconsciente.

Clarice nos diz: “A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. A linguagem é meu esforço humano. [...] Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível.” Acolher o que brota do inconsciente e retirar dessa experiência seu significado transformador é trabalho de uma vida inteira. É preciso coragem para prosseguir na busca pelo indizível em nossas vidas, permanecendo na descompressão até podermos retornar renovados por esse encontro. Estaremos, então, diante do mistério. Para finalizar, fiquemos com a também abismal Adélia Prado: “E aonde nós precisamos ir para encontrar essa vibração do mistério? A parte nenhuma, é só abrir os olhos. [...] O estímulo é abrir os olhos, é o cotidiano. Acho que a metafísica, a poesia, Deus, repousam nas coisas, nos objetos mais inusitados, mais surpreendentes, porque a poesia não recusa absolutamente nada. Tudo é matéria de poesia”.


                                          
Carta a Clarice
Renata Whitaker Horschulz

Como Carmem, sou uma leitora de Clarice, não uma estudiosa profunda da sua obra. Admiro muito os textos, as crônicas de Clarice. Para mim, ela fez um mergulho muito profundo na própria psique. É, então, um exemplo de vida – para a gente se aprofundar também na nossa psique. Trouxe para vocês uma crônica que retirei do livro A descoberta do mundo (1984), chamada “Pertencer” e que se encontra na página 110, ou também no livro Aprendendo a viver, que é de 2004. Ela é curta e vou ler para vocês porque tive a ousadia de escrever uma carta em resposta a essa crônica de Clarice que me tocou bastante. Então acho que é interessante primeiro familiarizar vocês com a crônica e, depois, leio a minha resposta.

A crônica “Pertencer” foi publicada primeiramente no Jornal do Brasil no dia 15 de junho de 1968 e, ao lê-la, senti um impulso de dar-lhe uma resposta, o que me motivou a escrever esse texto. Clarice, pelo que pude estudar, não gostava de falar da sua vida íntima, fugia das perguntas que a faziam sentir grande desconforto inventando fatos, datas. Inclusive usou um pseudônimo quando escrevia no jornal, no período de 1967 até 1973. Essas publicações, que muitas vezes não passavam de uma frase, geravam muitas reações no público leitor. Então, primeiramente, vou ler essa crônica para que vocês possam ser envolvidos pela autora e, em seguida, discorrerei sobre o que significa para um ser humano pertencer a algo ou a alguém, abordando também as consequências do sentimento de não pertença.

A maneira como Clarice aborda esse arquétipo do pertencer toca-nos e nos faz refletir muito sobre a vida do ser humano e sobre a nossa clínica. Ela consegue colocar de forma tão poética o viver humano, traduzindo em palavras aquilo que pensamos ser indizível. Pela clareza com que nos revela o sofrimento de desamparo, de não se sentir pertencente ao mundo, tocou e desassossegou tão profundamente minha alma que resolvi dar-lhe uma resposta, buscando uma solução, se é que isso é possível, que possibilite ao indivíduo sair dessa experiência originária de desamparo, podendo assim descobrir uma maneira de dar significado à sua existência. Leio, agora, a crônica “Pertencer”:

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque escrevendo, pelo menos, eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile de triste. Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras em um muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou associações? Porque não é isso o que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é, por exemplo, que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertencesse. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado com papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, então raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.

Embora eu tenha uma alegria: pertenço, por exemplo, ao meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele tão pertencente a ponto de ser brasileira. E eu, que muito sinceramente, jamais desejei ou desejaria popularidade – sou individualista demais para que pudesse suportar a invasão de que uma pessoa popular é vitima – eu, que não quero popularidade, sinto-me no entanto feliz de pertencer à literatura brasileira. Não, não é por orgulho, nem por ambição. Sou feliz de pertencer à literatura brasileira por motivos que nada têm a ver com a literatura, pois nem ao menos sou uma literata ou uma intelectual. Feliz apenas por “fazer parte”.

Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e, no entanto, premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas nascida.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim, eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.

Então, eu ousei dar uma resposta para a Clarice.

Querida Clarice,

Suas palavras a respeito do que significa para um ser humano pertencer a algo ou a alguém me tocaram profundamente. O modo como você aborda o arquétipo e consegue colocar de forma tão poética o viver humano traduz em palavras aquilo que pensamos ser indizível. Ao partilhar conosco suas palavras, você nos tira da solidão e da angústia. É incrível a clareza com que você nos revela o mundo que muitas vezes nos aprisiona, sem que consigamos enxergar uma saída. Você nos faz sentir a frustração do totalmente pensado, do consciente, e refletir sobre fatos que continuam a existir em nossa sociedade dita evoluída.

Para citar um pouco da história sobre o abandono, sabemos que na Grécia antiga meninas ou crianças com deficiência eram mortas ou abandonadas ao nascerem. Da mesma forma, na Roma antiga, ao nascer uma criança, a decisão de ficar com ela ou não cabia ao pai que, caso não a quisesse, poderia rejeitá-la, colocando-a na rua ou no lixo. Apesar de essas histórias nos chocarem, hoje em dia ainda muitas crianças são abandonadas, desprezadas e expostas ao seu próprio destino. Muitas vezes a rejeição e o abandono são feitos de maneira tão sutil que quase passam despercebidos, porém somente da consciência.

Em nossos consultórios de psicologia ouvimos muitas dessas histórias. E o mais grave disso é que muitas pessoas nos procuram com sintomas diversos, como angústia, depressão, ansiedade, pessoas que se sentem deserdadas pela vida, investindo sua energia no trabalho ou em relacionamentos, sem qualquer resultado. Muitas delas nem sequer têm a percepção de terem sido rejeitadas quando pequenas, ou ainda no ventre materno. Embora o nascimento de uma criança seja comemorado, por vezes, internamente, é sentido pela família como algo não planejado, não aceito. E aquele filho não é amado. Desde cedo aquela criança já se sente não pertencente a nada ou a ninguém. Nasceu e ficou simplesmente nascida, como diz Clarice. Não recebeu a marca do pertencer e, por esse motivo, sente-se como que deserdada pela vida. Quando lhe surge uma oportunidade de pertencer, simplesmente não consegue. Não por não o desejar, mas por incapacidade, chegando à triste conclusão de que a responsabilidade é toda sua. A pessoa que foi “abandonada” lá no início de sua vida muitas vezes desconhece o que ocorreu. Simplesmente experimenta que nada em sua vida dá certo, tem medo de amar e ser rejeitada, pode até entrar em um processo de autodestruição, emaranhando-se na não pertença.

Porém, precisamos ser criativos e buscar a ação que possibilita o acontecer e o aparecimento do singular de si mesmo, ou seja, a saída dessa experiência originária de desamparo, por não se ter recebido a marca do pertencer. Sem qualquer pretensão, consegui divisar três possibilidades, embora apenas uma me pareça realmente eficaz.

A primeira consiste em envergar uma máscara, condição que reduz o ser humano ao aprisionamento pelos códigos sociais, o que marca a ausência de uma presença, uma perda de alma, uma experiência de um vazio existencial profundo, em que só se é para fora. Ainda que o indivíduo marcado pela não pertença tente mostrar para si mesmo e para os outros sua capacidade, muitas vezes consome-se por não receber o que esperava em troca, podendo até chegar a adoecer. Outros, para se sentirem enxergados, arruínam tudo, fazem coisas erradas, autodestrutivas, jogam boas oportunidades da vida fora.

A segunda reduz um indivíduo a um organismo biológico, privando-o da transcendência, uma negação do potencial criativo inerente a qualquer ser humano. É viver por viver, nascer e tornar-se simplesmente nascido.

A última possibilidade que vislumbrei está em alcançar o registro simbólico da experiência vivida, tanto para que significados sejam adquiridos, como também para que um processo de transformação ocorra e o indivíduo possa, assim, realmente ser, ou seja, estar no mundo e além dele, podendo integrar sua condição de instabilidade frente ao outro através de uma presença que não pode ser reduzida pelo desejo ou vontade do outro.

Cada ser humano está, como diz Clarice, singularizado por uma pergunta, presente desde seu berço. Ela se esboça desde os primeiros movimentos da criança, no gesto que faz em direção ao outro, nos sentidos que se abrem. O modo como tal questão é encontrada pelo indivíduo confere-lhe determinado papel ou um lugar na vida familiar. As famílias organizam-se ao redor de mitos e estes são constituídos através das gerações, o que marca a história familiar. O bebê estrutura-se nesse campo. Ele é portador das questões enraizadas na organização mítica que caracteriza sua família e que irá se estender à sociedade, acabando por se relacionar às grandes questões de toda a humanidade. Portanto, você, Clarice, não está só. Quem sabe esse sentimento de não pertencer é um mito familiar que precisa ser transformado. Justamente aí pode estar sua ação criativa: promover uma ruptura com esse mito, ser singular entre os outros, tornar-se de fato um indivíduo indivisível.

O sentimento de não pertencer, como já disse, pode ocorrer dentro da própria família, quando alguém se sente estranho no meio familiar, a despeito, muitas vezes, de aparente acolhimento. Internamente, o indivíduo sente-se vítima de exclusão, não se vendo como parte daquele núcleo. Um recém-nascido não acolhido é exposto, deixado literalmente “ao Deus dará”, sendo assumido e marcado pela divindade, motivo pelo qual tal pessoa jamais conseguirá pertencer a algo ou a alguém. Ao se ligar à transcendência, a pessoa deixa de flutuar no vazio e passa a sentir o mistério que há em sua vida, pois os que são abandonados por seus semelhantes são acolhidos por Deus, portanto verdadeiramente livres, não podendo pertencer especificamente a ninguém, mas à humanidade, o que os torna uma dádiva para quem deles se aproxima. Vemos isto na alquimia e na religiosidade, em que do lixo são retirados os maiores tesouros, conforme, por exemplo, o Salmo 113: “Ergue da poeira o fraco e tira do lixo o indigente e os torna governantes”.

Algumas pessoas, porém, não se conscientizam do abandono que sofreram e vivem emaranhadas no sentimento de não pertença, assumindo um comportamento destrutivo em relação a si mesmas e ao mundo. Outras, contudo, após um profundo mergulho interno e a provação de atravessar períodos de muita dor, conscientizam-se de que pertencem a algo maior, tendo a percepção de que o sentimento de não pertença se transforma em um forte sentimento de liberdade, de generosidade e de amor para todos. Alguns, ao sentirem essas pessoas como especiais e ao verem seus esforços, podem percebê-las como seres heroicos, mas na verdade elas possuem o sagrado dentro de si, pertencem a Deus. Ao falar de Deus não estou me referindo a nenhuma tradição religiosa, mas a algo ainda maior, a um mistério que nos transcende. Por isso muitas vezes estas pessoas sentem-se destoando das que as circundam.

Clarice, concluo então que você, ao pertencer à literatura, encontrou sua experiência pessoal, a sua maneira de colocar-se no mundo e de significar sua existência, e não só pertence a alguém, mas a toda a humanidade. Ao buscar a hospitalidade de alguém para se sentir existente, algo de que todo ser humano necessita, você não poderia encontrar isso em sua família, pois sua alma é muito maior. Querida Clarice, em cada um de nós existem os que nos constituíram, o que nos torna portadores de toda humanidade. Portanto, suas palavras deixaram-nos um belo legado, ao nos retirar da solidão e nos ajudar a refletir, a tomar consciência de muitas coisas sobre a vida. Você contribui para a ampliação do quadro de referências de todos os seus leitores, pois ao ler a sua obra nos sentimos preenchidos, tocados e, conjuntamente, por você somos elevados à transcendência.


Clarice e a alma animal
Durval Luiz de Faria

Este é um ensaio poético-científico, ou científico-poético, como vocês preferirem. É mais uma reflexão sobre o livro da de Clarice, A paixão segundo G.H. Li vários livros de contos de Clarice desde a juventude, desde a adolescência. E li “A paixão segundo G.H.” na juventude, mas não consegui acabar. Eu Retomei esse livro várias vezes, mas mesmo assim não conseguia terminar. Então, quando surgiu a oportunidade de apresentar um trabalho sobre Jung e literatura no Simpósio Junguiano, pensei que, realmente, aquele era o momento.

Assim, este ensaio é o fruto dessa reflexão e dessa vontade de terminar o livro e pensar sobre ele. Faço então um pequeno recorte do texto, porque acho que podemos lê-lo de muitas formas. A primeira coisa que me veio foram as imagens e um som, que depois tentei entender. Mas deixo para vocês, para cada um entender à sua maneira. Depois, vou falar alguma coisa sobre como o livro me impactou.

A paixão segundo G.H. foi editado em 1964. É o primeiro romance de Clarice Lispector escrito em primeira pessoa, no qual ela fala a um imaginário “tu”, um outro que poderia ser inclusive o leitor. Nesse livro, uma mulher madura, escultora, bem adaptada e colocada em seu meio social de classe média, depara-se com situações inusitadas ao ficar só em seu apartamento de cobertura após ter despedido sua empregada.

A protagonista se diz uma mulher saudável, agradável, que aprecia a ordem e o mundo organizado. As situações com que se depara vão abalar as suas verdades e certezas e mergulhá-la em um problema de identidade. Ao entrar no quarto da empregada, Janair, para limpá-lo, G.H. se vê em um lugar bastante limpo e isolado, com desenhos na parede de um homem e uma mulher nus e de um cão.

A protagonista vê nesses desenhos um desafio, uma ousadia da empregada: “como ela ousa?”, Como se aquela fosse uma crítica ou uma mensagem para ela, G. H. “Como aquela negra ousava julgá-la?” Um ímpeto de ódio veio de suas entranhas, e ela diz: “Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feito de mim mesma e para mim mesma”. Janair era a primeira pessoa exterior de cujo olhar ela tomava consciência. A partir desse momento, G.H. começa a questionar a própria identidade, iniciando por sua persona estruturada, a máscara com a qual tinha se identificado.

Ao mesmo tempo, o olhar da negra pobre, denunciara a diferença de classes, a mulher do quarto de empregada e a mulher do apartamento de classe média alta, e, a forma como G.H. se via e se identificava. Essa tensão cresce quando, adentrando o quarto e abrindo o armário, a protagonista encontra um animal obscuro e sombrio, um animal arcaico que habita a terra desde antes dos dinossauros.

Daí para frente segue seu diálogo com o animal, em que as bases de seu eu serão questionadas, quando ela se vê diante de algo tão vivo, misterioso, que escapa à sua compreensão. Olhar para a barata, para suas camadas, para suas asas e seus olhos, provoca um medo e um nojo que vão abalar aquela vida tão organizada.

No entanto, às emoções primitivas adversas se contrapõem novos aspectos seus que também emergem. Nesse momento, ela diz: “É que inesperadamente eu sentira que tinha recursos e, agora toda uma potência latente enfim me latejava, e uma grandeza me tomava: a da coragem, como se o medo mesmo fosse o que me tivesse enfim investido de minha coragem. O medo grande me aprofundava toda. Voltada para dentro de mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um estímulo. E estremeci de gozo, como se enfim eu tivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce, como se, enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. [...] Toda uma vida de atenção há quinze séculos eu não lutava, há quinze séculos eu não matava, há quinze séculos eu não morria [...] Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao mesmo nível da Natureza”.

A protagonista explicita um aspecto interessante: ao mesmo tempo em que existe a emergência dessa sombra ancestral, que é consumada no encontro com a negra e a barata, encontro durante o qual séculos de civilização e vida organizada caem por terra como em um grande terremoto, cresce também a coragem como contraponto que lhe dá a força necessária para atravessar a via-crúcis.

G.H. também percebe uma “maior do que eu” e por que não dizer uma “grandeza maior do que o eu”? Estar ao nível da natureza seria experimentar a profundidade da realidade instintiva, aquilo que nos faz sentir vivos. Pensar a vida é algo, vivê-la em seu terror e êxtase é algo muito diferente.

Em momentos de crise de identidade, quando a persona é questionada para ser reformulada e, as forças instintivas emergem, é aconselhável, como faz Lispector, abrir-se para a coragem que é dada não apenas pelo ego, mas por algo mais profundo, um lugar de onde também surge o instinto. A protagonista tenta dar um sentido a essa desestruturação, sempre apresentando movimentos ambivalentes: ora aceitando a vida profunda que se apresenta, ora tentando resistir a essa força incontrolável.

G.H. descreve essa experiência como um “mundo em escombros”, escombros que clamavam por uma reconstrução, por uma mudança de atitude diante da vida. Diz ela: “Eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo”. Saindo de um mundo onde o ego é o centro para um mundo do qual faço parte e não sou mais o centro. Reconhecer-se como humana, corpo e natureza. Viver e dizer: “que grande diferença!”. “Eu, que antes vivera de palavras de caridade ou orgulho ou de qualquer coisa. Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido humano, porque o amor é a matéria viva. Amor é a matéria viva?”

Assolada por seu mundo instintivo, pelo qual se sentia atraída e enojada, a protagonista sente que falta o último passo para o enfrentamento e, assim, come a gosma branca que saiu do corpo da barata. Sente nisso uma provação Dele. Provação significa que a vida está me provando, mas provação significa também que eu estou provando.

Enojada, cospe fora aquele pedaço de vida e vomita, mas percebe que todo aquele processo não tinha sido em vão. Sente o gosto da natureza e da vida em um processo chamado despersonalização: “Eu fora obrigada a entrar no deserto para saber com horror que o deserto é vida, para saber que uma barata é a vida. Havia recuado até saber que em mim a vida mais profunda é antes do humano [...] Eu tivera que não dar valor humano à vida para poder entender a largueza, muito mais que humana, do Deus”. [...]

“Com o desmoronamento de minha civilização e de minha humanidade, o que me era um sofrimento de grande saudade, com a perda da humanidade, eu passava orgiacamente a sentir o gosto da intensidade das coisas”.

G.H., que vivia em um esquema mental sem sentido, mas brincando de ser viva, ao se deparar com a barata, retoma sua natureza animal, sua alma animal, por meio do contato com as camadas mais profundas. Como nos fala Jung em “A natureza da psique”, isso será um passo para encontrar uma imagem de Deus. A revelação de sua natureza aponta que a condição humana é o sacrifício, a experiência do sofrimento a leva para uma zona neutra, algo nem bom e nem mal, nem certo nem errado, mas o Si-mesmo que está além da construção frente aos artificialismos de nossa civilização.

Jung assinala que, como é sabido, o processo cultural consiste na repressão do que há de animal no homem. É um processo de domesticação que não pode ser levado a efeito sem que se insurja a natureza animal sedenta de liberdade.

Shamdasani coloca, Jung identificava os animais com impulsos e/ou instintos, o animal no homem corresponderia à sua natureza animal e, o animal nos sonhos era representação dos instintos. Uma tarefa muito importante da análise é tornar-se animal ( simbolicamente, é claro). Tornar-se animal, sentir-se animal, compreender a natureza animal do humano. Para Jung, o humano estendia-se do animal para o espiritual, respeitando o processo evolutivo. Sendo o arquétipo humano psicoide, compreende o psíquico, o animal, o espiritual e o social à medida que estamos imersos em um coletivo e dele nos diferenciamos, mas também a ele nos integramos.

Benjamim Moser, um dos biógrafos de Clarice, assinala a importância do animal em sua obra. Sempre há uma referência a um animal: gatos, a galinha, a barata, entre outros. Para o autor, o animal em Clarice advém de sua percepção, talvez em razão de seus traumas familiares, de que a vida não é humana e não tem valor humano. Consideramos essa percepção parcial, pois há certa descrença no humano e nos seus ideais. No entanto, não haveria um propósito da autora de revelar a natureza animal do humano e uma comunhão com a natureza e com o instinto? Não haveria a ideia de que é necessário desconstruir a vontade humana para que o mais genuíno se revele?

Jung considerava que os conflitos psíquicos e as doenças mentais advêm de uma unilateralidade da consciência e de uma compensação do inconsciente por meio do sintoma. Sendo assim, aquilo que está reprimido vem à tona, no caso desse romance, como o animal. Mas a identificação com o animal na consciência pode também deixar reprimido o espiritual. Sempre procuramos a totalidade ou a identidade, na qual não há divisão entre o eu e o outro. Como nos aponta Waldman, isso pode ser chamado de Deus, como o faz Clarice, ou imagem de Deus, a coniunctio, como coloca Jung. Os caminhos que levam a Deus são inúmeros, seja pela experiência mística, espiritual, seja pela viagem à profundidade instintiva. Jung nos diz que tanto o instinto quanto o espírito são autônomos a despeito do Ego e, quando essa autonomia se revela, deixamos de ser o centro do mundo, mas entramos no mundo.


EXPRESSÕES DO INCONSCIENTE NA CIDADE 

Grafite e a psique da cidade
Liliana Liviano Wahba e alunos da PUC Ana Carolina Prada, Camila Parducci Arruda e Vicente Goes

Note-se que Vigotsky e Jung, na mesma época nos anos 30, tratavam de um tema em comum, a psicologia da arte. Concordam com o papel fundamental na arte e na cultura e no desenvolvimento humano e não como uma mera sublimação. Podem-se estudar fenômenos contemporâneos sob a perspectiva da arte inserida na cultura e suas representações, entre eles os problemas causados por uma cultura de exclusão, violência, fragmentação. Estudos psicanalíticos, da psicologia analítica, investigaram consequências psíquicas em um ambiente urbano constituintes de uma metáfora urbana e de seu mal-estar, entendendo-se que a psicopatologia cultural nutre e fomenta a psicopatologia do indivíduo.

Outro tem atual visa o que se entende por complexos culturais. Na pesquisa que relataremos sobre grafite levantou-se a hipótese de que o crescimento desordenado de São Paulo, sem uma orientação coletiva para a qualidade de vida, ocasiona um trauma nos habitantes da cidade. O grafite exporia os sintomas deste trauma, em outras palavras, um tipo de complexo urbano, e proporcionaria uma comunicação simbólica sobre a psique da cidade. Grafite é um fenômeno carregado de relevância histórica, ganhou espaço cada vez maior nas ruas, em galerias e museus, com parcerias entre artistas e governo, também usado em projetos sociais.

Retornando a ideia de Jung que a arte abarca tanto conflitos de uma era, como imagens arquetípicas para elaborá-lo, podemos pensar que este crescimento do grafite tanto em quantidade, como no espaço ganho na sociedade, contém uma mensagem atual. O fenômeno é amplo e engloba a degradação do espaço público, mas, especialmente, nesta apresentação, o foco abrange um aspecto de um todo maior.

O fenômeno cultural do grafite, em pesquisa que realizamos na PUC, foi dimensionado sob três perspectivas: 1. via as metáforas e os símbolos das obras fotografadas, 2. Via a motivação e os valores de grafiteiros, artistas que atuam no contexto urbano e 3. mediante a opinião de pedestres diante das imagens do grafite. O método utilizado na pesquisa envolveu uma coleta de dados dos grafiteiros, o grafite das imagens e coleta de dados de pedestres.

Com os pedestres foi feita uma entrevista breve na rua, com 101 participantes nos cinco bairros onde as imagens foram colhidas. Usou-se análise do discurso do sujeito coletivo. Os resultados apontaram que 78 reparam nos grafites, 73 gostam e aprovam e a maioria vê o grafite como algo que melhora a cidade e a embeleza, além de consideram melhor do que a pichação e os muros sujos; resta dizer, se estivessem limpos, mas não estão. Essa é nossa realidade.

Para expor o discurso dos grafiteiros o Vicente trabalhou com o discurso como devaneio do Bachelard. Quatro artistas relevantes foram entrevistados: Rui Amaral, Sinhá, Boleta e Nunca. Resumidamente, o grafite hoje, segundo estes artistas, é um produto valioso que serve de plataforma para promoção de determinados artistas, mas também possibilita expressar de forma criativa a problemática e as contradições da cidade, além de tornar tais contradições visíveis. Procura ainda valorizar os espaços degradados para revitalizá-los empregando os recursos da imaginação.

Importante destacar que o fenômeno do grafite, enquanto acontecimento e prática, serve de compensação ao cotidiano da cidade, que também está expresso no relacionamento que a cidade tem na sua dimensão oficial com o grafite. Uma prefeitura convida para o projeto social e a outra apaga e re-marginaliza e, no meio disso tudo, figura uma iniciativa privada que se apropria do fenômeno para comercializar, dando então caracteres difusos do grafite essencialmente falando. Pode-se ver o grafite como o remédio e a queixa ao mesmo tempo. O acontecimento do grafite gera encontros e pressupõe uma rede de espectadores e artistas, em que a distribuição no espaço da cidade é mais determinada pelos fluxos deste meio do grafite do que pelas particularidades regionais e diferença nas localidades. Na Vila Madalena, um dos primeiros bairros em São Paulo a serem grafitados, tem amostras de grafites imortalizados de 20 anos e uma amostra bem atual. Temos o exemplo de Nunca, um dos entrevistados, a maioria dos índios fortões são dele. Ele saiu do Cambuci, trabalhou muito no Cambuci e recentemente foi para Itália para ficar pintando na Toscana. Essa fluidez tem muito a ver com uma mentalidade contemporânea de que o espaço não é mais uma limitação geográfica, ele é concebido de uma maneira fluxional. O grafite não é contido no espaço, ele tem muito mais uma conexão temporal do “fulano fez aquilo acolá” ou “você viu o muro que o cara conseguiu na Brigadeiro, vou conseguir um muro desse, mas só tem na vinte e três”, mas não deixa de ter um roteiro histórico.

Sobre as imagens decupadas a dificuldade que discutimos muito no grupo é que tiramos enquadres, fotos, que foram desdobradas em 903 imagens. Discutiu-se devia se considerar o enquadre como um todo ou não, mas era muito difícil de delimitar, porque as vezes o grafiteiro desenha e o outro desenha em cima, e tem umas que são cenas, mas você há como ter certeza de qual era uma cena intencional ou não. Optou-se, finalmente, em trabalhar com as figuras, que se seguem.

As seis regiões de pesquisa de imagens foram: Centro, Liberdade, Vila Madalena, Cambuci, Elevado Costa e Silva, mas somente de algumas ruas. Levantaram-se oito categorias temáticas, cada uma com seus desdobramentos. Para análise das imagens empregou-se o método descrito por Furth de pontos focais do desenho, a amplificação simbólica, e o método quantitativo qualitativo de interpretação de cena, empregado na pesquisa de Sandplay de Denise Ramos e Reinalda Mata. Um colega do Canadá surpreendeu-se com a quantidade de figuras humanas retratadas no grafite aqui, porque lá há mais as frases e abstrações, e nós temos muitas figuras humanas.

As figuras masculinas tinham bastante colorido e movimento, mas ao mesmo tempo elas transmitiam uma apatia e um esvaziamento. Às vezes passageiros sem rumo, porque muitas atividades davam a impressão de deslocamento sem se saber para onde. Poucas atividades concretas, de trabalho. Homens com pouco relacionamento, transparecem sentimentos de angustia, solidão, cada um por si ou sonhando, devaneando, quando estão sorrindo é mais um sorriso interior, mostram pouco contato e pouca interação. Note-se essa figura com um poder quase que mágico: é a imagem do De Niro naquele filme Taxi Driver, perambulando pela cidade enlouquecida e os outros fracos. E outras figuras fantásticas.

Chama à atenção a boca com dentes à mostra, aquelas bocas gritando, exibindo agressividade e oralidade. Ou o grito com um coração fora do peito, quem grita com o afeto deslocado?

Vários corações apareceram como objetos, muitos corações, esquematizados; e aqui este ser meio plugado a alguma máquina nos dá a impressão de alguém que está em estado de choque, o que mostra bem o estresse da cidade, enlouquecido, e o coração está pulando, batendo fora do peito, em sobressalto.

Há figuras que representam bem a persona, muitas vezes com máscara e chapéus diversificados. Ou a oposição entre persona e sombras, em alguns o artista parece um junguiano. A interação social nos chama atenção, porque ora é aglutinada em grupo como naquela figura que tem um tipo de tela de TV no olho, que significaria algo automatizado, além do sem número de robôs que aparecem. A figura indígena indicaria, dentro da etnia indígena, um grupo dedicado à pesca, mas na cultura urbana o grupo parece uma massa, um bloco só, sem interação de fato.

Muito interessante são os reis, lembrando o Prof Durval com os estudos sobre o patriarcado, alguns sinistros, e este descoroado, quer dizer, sem potência, apesar de maldoso, ou por detrás aparece uma máquina, um monstro. Ao mesmo tempo que há uma fraqueza grande da figura masculina - como neste homem fragilizado que está com uma figura projetada em baixo, o desenho/esboço segurando uma criança pela mão -, nós temos o homem bruto, o homem força retratado naquela imagem mais primitiva. Claro que este homem tanto pode ser o masculino de identidade, quanto o animus, o animus da cidade. Foi categorizado como figura masculina, interprete-se ou não como animus, assim como na anima, figura feminina.

Quanto à figura de herói, aparecem espadachins e outros heróis míticos. Há ironias, uma ninja em posição de luta com um sujeito com um chapéu de ganso, isso é francamente uma brincadeira, uma ironia do artista sobre tanta agressividade e luta ridícula. Surge o sorriso raro, poético, de quem está entregando uma flor, ou o riso sinistro de clowns também sinistros. As figuras indígenas aparecem, mas olhem lá a brincadeira: “Vende-se a Amazônia com tudo dentro”. E elas tem pernas fracas, um azul cianótico, de modo que perderam a vitalidade de alguma forma, mas persiste uma força do ritual. Quanto ao feminino, aparece com cores mais apagadas e semblantes mais fechados; têm um apelo. Estão ensimesmadas ou tristes ou apáticas ou sonhadoras, introvertidas ou pedindo uma ajuda, mas uma ajuda muda, porque as bocas na maioria são pequenas e trancadas e fechadas. Então são exemplos de várias figuras, o devaneio isolado, o olhar acusador, a dureza. Essa aqui, uma sensualidade, mas uma promessa de bolha de sabão. A sensualidade aparece, seja sádica ou em uma brincadeira sado-masoquista ou apelando mais para o consumo.

Pouco contato e gestos de ternura, pouquíssimos, como essa figura feminina que oferece algo a uma criança, ou essa que está fazendo uma comida para uma criança. Tem rainhas mais felizes do que os reis descoroados. Esta é uma rainha feliz, parece, mas qual é o poder que esta rainha mulher tem? Tenta se libertar de uma bruxa, solta os cabelos, solta o pássaro. A ideia de prisão e soltura apareceu bastante nas figuras femininas. O lado sombrio que aprisiona. Vocês querem uma coisa mais consumista que estar espremida em um copo com canudinho, aqui está, de óculos escuros. E esta figurinha pequenina nos encantou, quase passa despercebida, porque é uma coisinha pequenina em uma parede e ficamos discutindo o que era. Ora se via aprisionada, não, tá ali, com os braços para cima. Então uma criança de 5 anos solucionou o dilema: ela estava aprisionada em uma flor e está se liberando. Achamos ótimo, era isso: a energia para cima, mas, ao mesmo tempo, grande tristeza e depressão e calamidade. Uma mulher é atirada de um prédio com crianças calcinadas.

Sofrimento da figura feminina e masculina também. Um alívio nas figuras africanas em que há uma força da natureza, cântaros, gravidez, a vida passeando e se renovando.

A criança também nós trouxe um grande alívio, quando vimos que não tinha quase criança deformada, porque nos adultos as figuras estão bastante deformadas. Mas essas crianças estão muito solitárias, algumas em cima de alguma coisa, precisando de algum apoio. Tristes, ensimesmadas; chamam a atenção porque aquele gesto ativo de pular, de brincar da criança não existe; existe o devaneio e a fantasia, mas não tem aquela brincadeira ativa, então falta alguma coisa nessas crianças que estão pedindo também que alguém venha ajudá-las. Olhem só a criança plugada o que significa, a criança que está lá larga diante de uma TV, de um computador e a outra que é um balãozinho, ela é uma princesinha com um diamante no peito, ela é muito valiosa, mas está solta, não tem pezinho, ela é solta, alguém soltou e esqueceu, ela está pairando. Então quem está cuidando dessas crianças? Como compensação aparece a criança mítica, mata o dragão, está no mar como esse menininho no mar. Na cena toda, ele é parece o menino-herói que está exposto nas águas e vai conseguir, de alguma maneira, fazer um esforço e sair dessa. E a pequena Iara, como a denominamos, já antecipando uma mulher bem sensual.

A família quando aparece, está desvitalizada. Como nesta figura patriarcal atrás da mãe e do filho completamente mumificado, a mãe se virando para a esquerda dramática, triste, deprimida, de preto. A criança perdida, também triste, isso é um exemplo de uma família. Tem mais figuras maternas com crianças, o que é também uma realidade das famílias modernas, como esta mãe que está se liquefazendo com uma criança nas costas, é bem dramático; o que significaria a família em cima de uma árvore, de um galho, com uma sustentação bem frágil?

Quanto à relação entre masculino e feminino, aparece pouca relação de fato, quando é desenhada há pouca alteridade, seja na figura do cangaceiro em que ela o abraça e ele tem o esparadrapo no ventre, está chorando, mas ela abraça e agarra. A outro que é um homem acenando para uma figura que é uma esfinge, pode ser uma mulher, uma mãe, retrato de uma regressão da fraqueza do masculino dependendo de figuras imaginárias todo poderosas, a Grande Mãe, a anima. Um casal é assim: o homem segurando o coração de um lado e a figura esquemática da mulher do outro. Ou seja, o coração está fora da figura feminina, seja anima, seja mulher, e é uma posse, eu seguro como se fosse um objeto. Mas o coração também está na mão, mas fora do corpo. Os corações, a afetividade, o sentimento, pululando esquematizados ou deslocados.

E na festa, tem festas, apareceram bastante instrumentos musicais - evocação da arte -, e de novo pouco vinculo: estão fumando, óculos escuros, cada um por si.

Foram analisadas somente algumas cenas. Os casais míticos, símbolos de coniunctio, foram simbolizados nessas cenas. Nesta imagem identifica-se uma criança, tem um ser fálico, mítico, que está brincando com duas mulheres, flertando, brincando e parece inofensivo, não sabemos, elas flertam com o perigo talvez, ou com o poder enorme, fálico, o poder da vida. Quer dizer, seja quem for a cuidadora, as mães dessas crianças, essas crianças estão para trás. Como é um mito pode significar realmente que essas crianças vão encontrar o seu caminho. Mas, de qualquer forma, há um abandono.

Nesta outra cena parece haver - claro que nosso grupo usou seu imaginário -, uma ogra lá deitada com a cabeça que parece um espantalho e um homem menor montado nela. Ela está com as pernas abertas e sai um bicho, um rinoceronte com chifres, é um ser irreal, um bicho imaginário e, mais do lado, há uma figura petrificada de um homem de olhos vazados, com fumaça nos olhos, que representaria um endurecimento dessa figura que nasce da relação monstruosa.

Uma leitura pode ser feita dos mitos fundadores da cidade mediante essas distintas coniunctios: dessa transa monstruosa com a mulher ogro nasce esse homem que não escuta, com a cabeça fervendo, com o olhar duro, um homem endurecido. Mas também - esperançosamente - , há outra imagem de coniunctio, aqui tem um ser alado que vai fertilizar uma mulher que está em uma semente também alada: o ventre dela redondinho, como uma gravidez. Esse ser alado traz a inspiração, o lado criativo, o lado de força, de vitalidade, de espiritualidade. Vida na natureza e na cidade.

Também surpreendentemente, favoravelmente, a natureza desenhou-se preservada, árvores, rios, tudo limpo, o que a gente deseja. Foi assim que ela foi retratada. As árvores, às vezes menos frondosas, mas todas verdes.

Nas imagens da cidade ela dança, ela treme, mostra seus medos e traumas. Em outra cena, mostrando o grafite nasce como uma transgressão, como uma coisa clandestina e esse movimento tem que manter alguma transgressão para manter o sentido original, ainda que conte com parcerias de prefeituras atualmente. Na cena atrás do grafiteiro acontece algo de terrível, uma figura de rosto indígena está correndo, desesperado, mordida por demônios. O demônio aparece também com duas meninas que brincam com pedras que têm carinhas desenhadas, são pedras animadas. Como se a inocência, a ingenuidade dessas meninas convivesse com a monstruosidade, o que é alarmante, porque a monstruosidade está ali e a ingenuidade também, e podemos pensar em todas as coisas terrível que acontecem com nossas crianças, expostas às vivências demoníacas: prostituição infantil, abuso, maus tratos. Resta saber se essas meninas que estão brincando com as pedras animadas poderão edificar alguma coisa melhor ou vão sucumbir inocentemente ao demônio.

Um aproximação possível apenas como exercício pode ser feita com algumas figuras e a psicopatologia do trauma. Por exemplo, fragmentação, dissociação, despersonalização, transtornos psicossomáticos, estresse e ansiedade, narcisismo, borderline. A espiritualidade e a religiosidade se fizeram presentes. “Somente rezar não traz alívio”, parecem expressar: seja porque a reza com rosário não parecia muito operante em um afigura ou pelos santos desvitalizados. Houve santas sincretistas mais ligadas à natureza primordial, a figura africana e uma santa oriental, quer dizer, parece que a espiritualidade que traz alguma força provém de religiões orientais e do candomblé nessa amostra.

Sobre espiritualidade mais ampla, de repente apareceu a figurinha de homem, embaixo de uma máquina e ainda meditando: A tecnologia substitui os deuses? Como se a tecnologia trouxesse alguma ordem à corrente confusão, mas às custas de uma alienação espiritual. Havia muitos peixes, a maioria fora da água. O peixe estavam bem, coloridos, mas com falta de água, falta de algum a conexão emocional. Um deles costurado com uma casa em cima seria talvez um curador ferido carregando o mundo. O animal também ele não está deformado, há poucos animais deformados, mas ele está bravo, tem muitos animais bravos, carregando bomba e tem também os pacíficos. Borboletas, insetos, pássaros, insetos voadores foram em número juntando ambos, maior do que os mamíferos, que é a categoria de animais que mais apareceu, isto representaria a psique, a imaginação, a arte e, claro, apareceu nos artistas. Os grafiteiros retrataram o que eles acham que estão fazendo: oferecendo arte. Apareceram mitos, figuras lendárias, os homens peixes, Neruda, Adoniran Barbosa, figuras do cinema, música.

Aparecerem o que chamamos de figuras tricksterianas, ligadas a alguma coisa folclórica, indígena, no exemplo de um índio com uma flauta que está embaixo de algo que parece um totem, quer dizer tem uma conotação espiritual-religiosa, uma figura que traz uma alegria de viver; ele se solta lá nas estrelas, um falo fertilizador. E outra figura brincando de cartola, quase que tirando sarro com uma semente psicodélica, um fungo atrás, pode até ser um sinal, uma alegoria de um LSD da vida, mas é a pujança do vivo, da força da natureza, da brincadeira tricksteriana no meio de todo esse caos.

A capacidade de resiliência, em suma, está presente, essa capacidade de construir algo melhor com a nossa humanidade. Como uma figura mostrou, uma fertilização, essa possibilidade de fertilizar de maneiras novas, admitindo a dor e o sofrimento, mas afirmando a capacidade de fertilizar e de trazer uma vida, ainda que não seja da maneira que teríamos gostado para o rumo direcionado da humanidade e da cidade.

Apesar da degradação e do hercúleo trabalho e esforço para resgatar e construir, sem ingenuidade, os símbolos aponta caminhos, podemos transar monstruosamente e criar petrificações ou morrer junto com o que acontece com a devastação do mundo, ou podemos transar com asas, com flores e trazer crianças que não fiquem desamparadas e que tenham apoio, um sustento e um horizonte. O grafite é uma expressão do imaginário, do mito e da imaginação e, ao mesmo tempo em que revela símbolos, o grafite próprio é um símbolo da capacidade de resiliência via imaginação.

EXPRESSÕES DO INCONSCIENTE NO LIVRO VERMELHO DE C.G. JUNG 

O Livro Vermelho de C.G. Jung
Walter Boechat

O nosso tópico é o chamado “Livro Vermelho” de C. G. Jung, sua recente publicação e a enorme repercussão mundial de sua aparição para o grande público após quase um século de sua escrita. O livro publicado pela primeira vez em 2009 pela editora anglo-americana Norton teve, até o presente momento, diversas edições em diversas línguas. Uma das primeiras traduções foi a brasileira, já em 2010, pela Editora Vozes da qual tive a honra de participar como revisor da tradução para o português.

Muitos de vocês que já conhecem o Liber Novus, devem ter ficado impressionados com sua aparência única, seu tamanho pouco usual, à moda de um livro de arte- e ele realmente o é- a aparência medieval de seu texto e suas belas ilustrações. Pois bem, faz parte do contrato com a Norton que o formato e conteúdo da edição brasileira fossem rigorosamente iguais à da edição anglo-americana. Ao começar a receber os capítulos do Livro Vermelho em arquivos word pela internet para revisão, perguntei à Editora Vozes se não haveria um prefácio para a histórica edição brasileira. Foi-me informado que, por contrato, a edição brasileira teria que ser rigorosamente igual à edição original da Norton, incluindo tipo de papel e dimensões do livro. Detalhes como a edição das belas ilustrações foram rigorosamente seguidos: assim como na edição anglo-americana, a edição brasileira teve a edição das belas ilustrações do livro feitas na Gráfica Mondatore, da Itália, uma das melhores do mundo. Como a edição da Norton não continha um prefácio, apenas a introdução do editor Sonu Shamdasani, a edição brasileira também não teve um prefácio. Ao final as edições do Livro Vermelho foram feitas com muito cuidado, um trabalho quase artesanal.

O Liber Novus começou a ser escrito em outubro de 1913. Até 1917 as partes fundamentais da obra tinham sido completadas, mas Jung ainda trabalhou sobre ele até 1928. É um livro totalmente original, único em seu conteúdo e apresentação. Não pode ser considerado uma obra de psicologia no sentido clássico, é antes a expressão de um grande brotamento criativo na vida de Jung que iria orientar toda sua obra teórica posterior. O livro é a descrição viva de imagens internas poderosas com as quais Jung interage e dialoga de forma ativa procurando seu significado mais definitivo, sua mensagem última para a mente consciente. O escrever e o configurar essas experiências em forma de imagens de grande densidade de significado ajudaram Jung em um processo de integração simbólica.

Jung afirmou em seu autobiografia, Memórias Sonhos e Reflexões que a melhor maneira de confrontar emoções primitivas seria dar forma a elas, algum tipo de configuração estética. No Liber Novus esse processo de personificação das emoções ocorre a todo momento, pois todo o livro é um constante personificar de conteúdos inconscientes, um diálogo com esses conteúdos em um contínuo processo de integração.

O Livro Vermelho pode ser comparado a vários clássicos da literatura de todos os tempos, como A Divina Comédia de Dante Alighieri, a Odisséia de Homero ou o Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. O livro de Jung tem entretanto suas peculiaridades se comparado aos clássicos: enquanto Dante tem Vírgílio como seu guia para o mundo inferior, Jung tem vários guias e várias formas de interação com esses personagens, sendo o principal deles o mago Filêmon; se Nietzsche anuncia a morte de Deus, Jung fala do renascimento de Deus sob forma simbólica no espaço subjetivo de cada um.

O livro foi escrito em forma tradicional gótica. Diversas citações estão em latim. O formato mantém-se dentro da tradição dos papiros medievais: sua paginação é em formato de fólios. O rectum, a parte da frente, é a página à esquerda de um livro aberto a nossa frente, o versum, a página de trás, a página à direita. As ilustrações têm a aparência das iluminuras medievais seguindo a técnica da têmpera, modo de ornamentar os altares medievais antes do advento da técnica do óleo sobre tela. Na têmpera, normalmente usada sobre a madeira, os pigmentos são misturados com água e ovo, produzindo a peculiar impressão de profundidade e transcendência mística das pinturas religiosas medievais. Percebe-se nas iluminuras como o texto medieval é ornamentado. Na iluminura medieval típica as letras maiúsculas do início dos capítulos são ornamentadas e Jung também fez uso abundante desse recurso.

A própria estrutura do livro parece transmitir a importância que a tradição medieval sempre teve para Jung. Ele escreveu no ensaio “Os problemas psíquicos do homem moderno” (Obras Completas Vol. 10, § 163) que “o homem moderno perdeu todas as certezas metafísicas da idade média, trocando-as pelo ideal de segurança material, do bem-estar geral e do humanitarismo”. Em diversas ocasiões Jung disse também que a Idade Média teria tido uma enorme importância para o desenvolvimento de seu processo psicológico pessoal. Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista, a beleza detalhista de uma iluminura. A ideia da Idade Média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflexe-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da razão unilateral da modernidade.

É importante enfatizar que o Livro Vermelho não é apenas o fruto de um brotamento espontâneo do inconsciente; isto é, um livro feito a partir de uma inspiração súbita. Pode-se pensar assim porque o Liber Novus realmente foi produzido durante um processo de intensa transformação psicológica de Jung. O editor Sonu Shamdasani lembra que, ao contrário, o Livro Vermelho é uma obra cuidadosamente elaborada, feito em camadas, através de sucessivas revisões. Curiosamente o Livro Vermelho é mais editado que diversas obras de Jung presentes em suas Obras Completas. Basta lembrarmos o livro Resposta a Jó (OC Vol. 10), que como relata a assistente de Jung, a analista Marie- Louise Von Franz, foi uma livro escrito de forma fortemente inspirada, sob o efeito de doença, com uma forte febre. A febre cessou após completada a obra. Posteriormente Jung iria declarar que aquela obra seria seu único livro o qual não mudaria uma só vírgula (Von Franz, C. G. Jung, His myth in our time, Putnam, Nova York, p. 161). Ao contrário dessa obra, o Livro Vermelho foi cuidadosamente editado e revisado várias vezes.

Sonu Shamdasani explica que o livro passou por diversas etapas em sua organização. A primeira foi a de contato direto com os sonhos, fantasias e imagens, colecionados nos chamados Livros Negros, anotações de sonhos e experiências pessoais de Jung. Em uma segunda etapa, Jung copiou e fez algumas modificações e acréscimos a essas primeiras impressões. Essa primeira cópia é datilografada e enviada a um grupo de amigos muito íntimos que leram as anotações e opinaram sobre elas. Foram produzidos assim um esboço e depois um esboço corrigido. Só depois em uma quarta fase Jung iria transcrever em forma caligráfica suas experiências, copiando-as usando letra gótica e iluminuras e encadernando-as em forma de um pergaminho antigo. Ainda em diversos momentos de elaboração desses conteúdos Jung iria lançar mão de ricas ilustrações.

Em 1920 Jung edita novamente o texto, moderniza ligeiramente a linguagem e faz modificações. Não diretamente nas fantasias, é preciso deixar claro, mas somente nos comentários e amplificações às fantasias, criando assim uma segunda camada de elaboração. Em toda sua estrutura podemos perceber que o Liber Novus é organizado em duas camadas: uma primeira na qual estão as percepções, imagens, sonhos e imaginações, uma segunda, na qual existem comentários, elaborações e amplificações em uma tentativa de incorporação das imagens originais sem no entanto recorrer a termos técnicos de uma linguagem psicológica tradicional. Fica claro, portanto, que mesmo nesse segundo nível não se trata de uma interpretação ou explicação teórica do anteriormente vivenciado. Isso levou Shamdasani e Hillman a comentarem que o Liber Novus apresenta uma crise de linguagem, já que propõe uma abordagem da alma sem a linguagem psicológica clássica, com seus termos técnicos, inteiramente ausentes no Liber Novus (Shamdasani e Hillman, Lament of the Dead, p. 86 e ss., Norton).

A presença de um grupo de amigos íntimos na fase inicial de elaboração do Livro Vermelho revela uma interessante posição extrovertida de Jung, em um momento de maior aprofundamento com experiências inteiramente novas, ele consegue compartilhá-las e trocar ideias sobre elas. É também relatado que em certos momentos Jung teria mostrado conteúdos do livro, algumas ilustrações a algumas pessoas próximas. Jung não se isola assim em suas experiências, por mais novas e revolucionárias que fossem. A contínua preocupação com o outro parece indicar que o Liber Novus devesse ser publicado em algum momento, segundo comentou Sonu Shamdasani, de modo a poder gratificar a todos genuinamente interessados em conhecer melhor a essência das experiências de Jung. Ao contrário, os Livros Negros foram escritos de forma mais pessoal constituindo uma organização de experiências subjetivas de forma mais intimista.

Podemos perceber portanto o Liber Novus como uma obra elaborada em dois níveis. Em uma primeira fase há a emergência de imagens espontâneas, confirgurações simbólicas de grande intensidade emocional, um caleidoscópio de imagens estranhas e inesperadas. Em um segundo nível essas imagens de grande densidade simbólica são trabalhadas dentro de um processo reflexivo, simbólico-interpretativo. Essas duas camadas lembram em sua organização dialética a dinâmica mental que Jung descreveu em sua obra Símbolos de transformação (1912/1951) como “os dois tipos de pensamento”. A vida psíquica seria constituída por dois tipos de pensamento, o pensamento circular ou mitológico, dominante nos sonhos e fantasias e o pensamento linear ou adaptativo, próprio da consciência. O símbolo dentro do processo de individuação brota da síntese criativa desses dois tipos de pensamento. No Liber Novus entramos em contato com as experiências irracionais de Jung, inteiramente fora das expectativas da mente racional consciente. Podemos perceber como a mente consciente procura organizar essas experiências pelo pensamento racional, de maneira a que as experiências originais aparentemente caóticas possam se organizar de forma mais ou menos accessível para a mente consciente. O recurso simbólico oferece dentro dessa dinâmica um meio termo, um caminho do meio, um caminho possível entre o insólito do inconsciente e o já conhecido mundo da consciência.

Sob esse aspecto o símbolo adquire importância capital para o organização orgânica do Liber Novus. Esse fato fica evidente desde o princípio do Liber Novus. Já o capítulo de abertura do livro tem o título: O caminho daquele que virá. Jung cita em latim palavras do profeta Isaías que fala do caminho do Salvador que virá. A interpretação de Jung para o Salvador (no livro Símbolos de Transformação) é que o salvador é o símbolo, pois só o símbolo pode abrir caminhos novos.

A interpretação simbólica e a amplificação histórica não esgotam a questão da realidade da alma, central nessa confrontação com as figuras do inconsciente. As próprias figuras se afirmam como reais. Pode-se citar como exemplo disso os capítulos finais do Liber Primus como as figuras internas nomeadas como Elias e Salomé. Elias, o sábio profeta do antigo testamento aparece acompanhado de Salomé, a mulher pagã enteada de Herodes e filha de Herodíades, responsável pela decapitação de João Batista. Elias se refere a Salomé como sua filha e diz ainda que ela junto a ele desde a eternidade. Jung, seguindo os ditames da lógica consciente reage com grande surpresa e indignação pela proximidade de um casal tão oposto. Jung, em seu diálogo imaginativo com o par, diz que eles são símbolos de conteúdos opostos. Elias discorda, afirmando que ele e Salomé não são símbolos, mas são tão reais como são reais os objetos e figuras do mundo consciente de Jung. Aqui se descortina o complexo conceito de realidade de alma, conceito que Jung só irá elaborar teoricamente em sua obra de 1946 Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico, (OC vol. 8). Nessa elaboração teórica, demasiada extensa para abordarmos nessa oportunidade, o inconsciente deixa de ser um epifenômeno da consciência, apresentando-se ao contrário como tendo uma natureza ontológica própria.

Jung procura ainda se aproximar dessa experiência surpreendente com esses personagens misteriosos usando da teoria dos opostos psicológicos. Procura ver no profeta Elias, a expressão do espírito ou logos, sua função psicológica pensamento, a mais diferenciada. Salomé, que aparece como uma jovem cega, representaria o princípio do eros e também sua função psicológica inferior, o sentimento. Vejo nessa elaboração racional uma forma da consciência se proteger do poder numinoso das imagens do inconsciente coletivo, pois como o próprio profeta Elias irá afirmar ele e Salomé não são símbolos, mas são reais, assim como são reais objetos e pessoas do mundo material.

Na elaboração da profunda experiência com Elias e Salomé Jung lança mão de um segundo processo, além do método interpretativo: o trabalho de amplificação histórica que ele já tinha inaugurado em seu livro terminado pouco antes do Livro Vermelho, Símbolos de transformação. Na tentativa de compreender a aspecto quase incompreensível da proximidade de Elias e Salomé, Jung procura associar a eles figuras históricas de Velhos Sábios acompanhados de jovens mulheres e percebe ai um padrão, um espécie de paradigma cultural: o antigo alquimista de Alexandria, Zózimo, acompanhado de sua soror mystica, Theosebeia, o cultuado primeiro gnóstico do mundo antigo, Simão, o Mago, que segundo a lenda era acompanhado de uma jovem bailarina chamada Helena e assim diversas outras estórias e lendas. Esses pares com figuras semelhantes aparecem na alquimia, na filosofia, na religião e mesmo nos contos de fada tradicionais quando o velho aparece como um espírito da montanha que aprisiona a princesa. Jung tentou fazer uma amplificação simbólica para compreender melhor o aparecimento de Elias e Salomé. Esses pares falam simbolicamente do eterno fluxo da energia psíquica dentro do processo de transformação psicológica.

Aparecem ainda em diversos pontos da narrativa vivências surpreendentes que fogem totalmente à lógica consciente. Um exemplo é a serpente de Elias. O simbolismo da serpente ocupa lugar de destaque em todo o Livro Vermelho. Em certo momento a cobra aparece como um animal de Elias, que depois, por uma dinâmica própria, passa a pertencer a Jung, na parte final do Liber Secundus. Essa passagem misteriosa parece retratar a dialética entre consciente e inconsciente, entre a consciência e o poder autônomo das imagens. O inconsciente tem um grande poder de fascinação, mas é fundamental a função dialética da consciência. A serpente, como símbolo básico da libido, passando de Elias a Jung, simboliza o fortalecimento da consciência no processo dialético com as figuras do inconsciente. Em todo o Liber Novus está presente o poder numinoso dos personagens do inconsciente, mas a posição dialética da consciência é crucial. Nesse momento é fundamental a não identificação com as imagens. Parece-me que um certo esvaziamento do poder fascinante de Elias nesse momento é importante, dentro do processo dialético, embora a serpente mantenha sua força como símbolo da identidade original.

Um dos aspectos mais peculiares do Liber Novus é a presença de numerosas ilustrações simbólicas. Tem-se a impressão de que Jung vivenciou certos momentos de sua experiência interior de forma tão profunda e intensa que a linguagem puramente conceitual não seria capaz de dar conta dessas experiências e ele teria buscado um caminho de expressão não-verbal. Tal acontece, por exemplo, quando há o encontro com o personagem Izdubar, um tipo de herói oriental. Esse personagem tem aparência gigantesca e trajes como os de um antigo herói mitológico. O desconhecido identifica-se para Jung como sendo Izdubar, aquele que vem do oriente para conhecer os povos do ocidente e seus costumes. Jung refere-se a si mesmo como aquele que vem do ocidente e descreve os povos do ocidente para Izdubar, suas enormes cidades, sua tecnologia e de suas máquinas voadoras usadas para viagens distantes. Izdubar fica profundamente surpreso com a tecnologia ocidental e passa a sentir-se cansado e doente. A linguagem racional, o pensamento científico tornam-se uma ameaça para ele, sua fraqueza aumenta e sente-se ameaçado de morte.

As referências de Izdubar são os elementos da natureza, os mitos, as profecias e a magia. Sente-se fraquejar como se fosse morrer, deita-se no solo, sente-se fraco. Jung também teme a morte do herói. Intuitivamente, Jung chega à conclusão de que a única maneira de salvar Izdubar é pensar nele como uma fantasia, ou um símbolo. Ocorre algo surpreendente, nesse momento: o herói diminui de tamanho, de forma tão radical que passa a caber em um ovo. Jung passa então a entoar cânticos védicos da antiga Índia para restaurar a virilidade, cânticos apropriados para chamar poderes curadores. O herói é curado e restaurado e renasce sob a forma do deus órfico Phanes.

Esse momento de cura de Izdubar pelos rituais mágicos é de tal forma misterioso que Jung lança mão de copiosas ilustrações em uma tentativa de descrever o cerne do mistério. A linguagem racional não tem meios para expressar o processo de transformação que ocorre nesse momento de cura do deus adoecido, recolhido em forma reduzida, pequeniníssimo, dentro de um simples ovo. As ilustrações tentam expressar esse momento de culminância. Apenas como exemplo, há a ilustração de uma árvore cósmica que contém vários círculos, representando vários momentos, várias transições. Nas raízes da árvore está o ovo, protegido em seu processo de incubação do deus.

Nietzsche declarou certa vez que Deus está morto. Cabe perguntar que Deus é esse que morreu e o que significa isso para a modernidade. O processo de cura e restauração de Izdubar mostra que, ao contrário, um deus antigo pode ser restaurado sob forma simbólica no espaço psicológico subjetivo. Sobre esse aspecto Jung iria escrever sua conhecida afirmação no seu Comentário ao livro de alquimia chinesa, O segredo da flor de ouro: "Os deuses tornaram-se doenças. Zeus não governa mais o Olimpo, mas o plexo solar e produz espécimes curiosos que visitam o consultório médico, também perturbam os miolos dos políticos e jornalistas que desencadeiam pelo mundo verdadeiras epidemias psíquicas". (Comentário a O Segredo da flor de ouro. OC Vol. 13, § 54.)

O emprego de ilustrações na elaboração dessas experiências inaugura uma técnica de abordagem psicoterapêutica não-verbal. Se na psicanálise tradicional temos com a primeira paciente de Breuer-Freud, Anna O., a famosa metáfora da cura pela fala – talking cure – temos aqui a inauguração do método junguiano de psicoterapia mais independente de suas raízes freudianas, expressando um caminho de cura pela não-fala, pelo uso de técnicas expressivas diversas: técnicas de desenho, pintura, modelagem, técnicas expressivas corporais e a terapia pela caixa de areia, técnicas posteriormente desenvolvidas em suas bases teóricas por diversos discípulos de Jung.

Há um outro aspecto do Livro Vermelho bastante discutido e de grande importância que é o dos limites entre normalidade e loucura, psicopatologia e criatividade. Até que ponto o livro revela aspectos de fragilidade egóica do próprio Jung? Em 1911, na primeira edição de Símbolos de Transformação Jung interpretou as fantasias espontâneas da Ms. Miller como um caso de esquizofrenia, ou pelo menos com sinais prodrômicos de caso de esquizofrenia, como escreveu na epígrafe da edição: Análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Entretanto acuradas investigações históricas realizadas por Sonu Shamdasani revelaram que a paciente cujos poemas foram estudados por Jung tinha um ego relativamente bem preservado, sem estrutura psicótica.

A senhora Miller (seu nome real) era jovem americana que viajou pela Rússia e países no leste Europeu. De volta aos Estados Unidos, proferiu conferências com trajes típicos dos países por ela visitados. Nenhum sinal portanto de uma personalidade esquizoide ou recolhida, ao contrário.

O diagnóstico de Jung revela-se portanto pessimista em excesso. Se ele errou com Mrs Miller uma segunda vez ele iria errar: consigo próprio. Sabe-se que o Livro Vermelho tem início quando Jung em viagem de trem tem visão (não um sonho, mas uma visão que se repetiu) de uma Europa inundada por sangue e cadáveres. Jung supõe que ele próprio estivesse entrando em uma crise psicológica séria, como confessou certa vez. A visão foi em outubro de 1913, quando em julho do ano seguinte teve início a primeira Grande Guerra, Jung foi tomado de alívio, como comentou em particular com Mircea Eliade.

Mas sem dúvida a crise da cultura europeia acontecia pari passu com a crise pessoal de Jung. Tem-se que pagar um preço para se trilhar o próprio caminho e fugir nas normas estabelecidas pela sociedade. Esse seria o fio da navalha mencionado por Somerset Maugham.Talvez esse momento crucial da vida de Jung expresse o que ele chamou de crise de metade de vida, que não é exatamente a metade cronológica da vida biológica do indivíduo, mas o instante em que sua libido deixa de ser investida majoritariamente em objetivos externos (competição profissional, vida material e marital) e passam a predominar os objetivos internos, a religião, a maturidade, as questões de sentido existencial como predomínio do investimento libidinal. Em Símbolos de transformação Jung trabalha extensivamente o mitologema do Herói e como ele expressa o processo de individuação no curso solar, o mito do herói solar: nascimento no oriente, primeira metade da vida, o meio dia, o momento de maior realização no mundo exterior, e depois a preparação para a morte, no ocidente (palavra que deriva do latim, occidere, morrer.) Esse processo Jung procurou expressar em uma das mais belas ilustrações do Livro Vermelho, uma barca conduzida por um personagem encapuzado. À frente, um grande peixe faz referência a variações desse mitologema, onde o héroi é devorado por um grande peixe para depois renascer, como Jonas.

É possível perceber essa viagem de transformação em Jung. O Liber Novus emerge em momento de ampla crise pessoal de Jung marcada pelo rompimento com Freud e com a instituição psicanalítica, após ter sido o primeiro presidente da IPA (Associação Psicanalítica Internacional). É um momento de afastamento das instituições: além da instituição psicanalítica deixava também seu posto de docente na faculdade. Manteve entretanto sua clínica privada, atendendo seus pacientes.

É significativo que nesse momento que Jung está rompendo com as instituições oficiais, aparece com frequência no Liber Primus uma comunicação, uma sugestão, um chamado, que ele denomina o espírito da época. A esta logo se contrapõe outra forma espontânea de manifestação do inconsciente, o espírito das profundezas. Jung é chamado a transcender o espírito da época para seguir o espírito das profundezas. Essa linguagem metafórica descreve o processo de transformação psicológica que Jung estava passando naquele momento, mudando sua forma de perceber o mundo a si próprio, deixando os caminhos rotineiros do espírito da época para descobrir novos caminhos. Logo após encontra sua alma que funcionará como sua guia em todo o Liber Novus, a quem lança a pergunta, em um dos momentos mais belos do livro:

“Minha alma, onde estás? Tu me escutas? Eu falo e clamo a ti. – estás aqui? Eu sacudi de meus pés o pó de todos os países e vim a ti, estou contigo; após muitos anos de longa peregrinação estou novamente contigo”.(Liber Primus, Cap. I, “O Reencontro da Alma”).

Muito se tem falado sobre a crise de metade de vida de Jung e sua relação com a produção do Liber Primus. Vejo que esse momento foi importante na gênese do livro, mas parece-me que o Liber Novus seria mais bem compreendido como um brotamento simbólico de todo o processo existencial de Jung que tem início em sua própria infância. Ao lermos Memórias Sonhos e Reflexões nas primeiras lembranças de Jung vamos perceber elementos que aparecem no Livro Vermelho e são ali elaboradas.

Como exemplo podemos citar o pensamento proibido que Jung se permitiu pensar aos 11 anos. Como é relatado em seu livro de memórias, Jung passeou pela praça de Basiléia e viu num belo dia de sol a nova igreja, o céu azul. Posteriormente em casa, sentiu o impulso de pensar algo, mas não se permitiu a ter o pensamento. O conflito chegou a tal ponto que dormiu pessimamente à noite. Sua mãe chegou mesmo a notar que ele não estava bem e procurou ajudá-lo. Jung finalmente permitiu que o pensamento viesse à tona. Primeiramente viu o templo cristão do dia anterior e Deus aparecia em meio às nuvens. Subitamente Deus defeca sobre o templo e seu teto e paredes viram escombros sob o excremento de Deus.

Deus defecando sobre a igreja majestosa. Esse é um pensamento original e revolucionário que abrange nos problemas pessoais de Jung com seu pai pastor protestante que não acreditava no que pregava até aspectos sociais, filosóficos e psicológicos da religião. Esse pensamento que Jung relutava em ter encontra suas respostas no Livro Vermelho. Outra imagem intrigante aparece no sonho do falo subterrâneo, ocorrido na quase inacreditável idade de três anos. Aparte outras conexões que se possa fazer (inclusive com o desenvolvimento psicossexual de Jung) esta representação estaria relacionada ao deus gnóstico Abraxas, importante personagem no Liber Novus. Segundo Shamdasani, Jung estaria revisitando seus primeiros sonhos de infância por ocasião da escrita do Livro Vermelho. Podemos entender os processos simbólicos presentes no livro como manifestação do desenvolvimento psicológico de Jung. Nesse contexto, recordamos também a frase seminal coma qual Jung abre seu livro de memórias:” Minha vida é história de um inconsciente que se realizou”. O Livro Vermelho é parte importante dessa realização.

 

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