O escrito abaixo pretende, de modo rápido e compacto, desfazer mal-entendidos, simplismos e preconceitos a respeito da mestiçagem, mostrando-a como uma abertura radical para as alteridades, sejam sujeitos, bichos, materiais ou objetos, que constituem o grande processo, ao vivo e em movimento, da cultura vista como relação entre linguagens, corpos e coisas.
Mestiçagem aqui não remete ao cruzamento de raças, ainda que obviamente o inclua, mas à interação entre objetos, formas e imagens da cultura. A mestiçagem não opera por fusão, que apaga as diferenças, nem por mero reconhecimento das diversidades, que as mantém isoladas: é sim um conhecimento a partir do bote canibalizante no alheio, em vaivém e ziguezague, montagem em mosaico móvel dessas multidões de outros, suas linguagens e civilizações. Está, portanto, aquém das lógicas binárias da identidade e das oposições: as dualidades dos centros e das periferias não lhe servem. A mestiçagem é uma onça alegre que se alimenta de todas esses outros (bichos, gentes, objetos) escondidos, abandonados e rejeitados.
A mestiçagem passa longe das totalizações epocais sucessivas: ser moderno, pós-moderno ou contemporâneo lhe é um alimento esporádico e desprezível de superfície, já que pensa, come e trabalha por aglutinações fora-dentro e alto-baixo, de inúmeros pertencimentos, camadas e competências cognitivas. Os conflitos entre o velho e o novo não lhe bastam, porque inevitavelmente duais. Habita-se da multiplicidade, da variação e do mirim.
Não lhe é suficiente o hibridismo, pois que à mestiçagem não interessam apenas as proximidades e aglomerações quantitativas de fronteira, mas principalmente as inclusões e conexões sintáticas, através de todos os procedimentos de toda e qualquer linguagem, que transformam o separado, seja distante ou contíguo, em retículas, reentrâncias ou labirintos de alteridades em ação e reação.
A mestiçagem respira com a tradução. Não aceita deuses exclusivos. Não se satisfaz com a diferença, a não ser que esta também se misture e desdiferencie. Não tem de “respeitar” o outro, porque ela “está” no outro. Vive no devir do outro.
Sendo marchetaria, pigmentação, cerzidura não-ortogonal, filigrana miniaturalmente concreta da cultura, desde sempre nômade e fractal, nunca está só nos conteúdos das mensagens: entra nas imagens e telas quando quer ou permitem, ou quando aprenderam a inseri-la; pode estar nos babados dos quadris que andam e dançam, nos gestos e neurônios ou nos corpúsculos frutais de um poema, filme ou novela. Instaura uma necessária confrontação entre a velocidade cultural dos códigos e a velocidade virtual da telemática.
Esta mestiçagem também não se explica pelo discurso dos meios, poderes e instituições: atua, coletiva ou anonimamente, nos porões da história e nas séries da cultura cotidiana, como enorme laboratório e almoxarifado da memória, desde um simples objeto de uso doméstico aos grandes espetáculos massivos. Sem ela não há mediação possível. Daí que suas melhores imagens procedem das paisagens botânicas, onde todos os fatores ambientais, pra cima e pra baixo, pra dentro e pra fora, atuam, tectonicamente e ao ar livre, em conjunto: xaxim, trepadeira, caramanchão.
A mestiçagem, na América Latina, não tem de correr atrás nem de superar nenhum paradigma da chamada ciência ocidental.. Por ser constitutiva do nosso conhecimento, é o inevitável território de qualquer experiência múltipla e dilatada das excessivas misturas a que chamamos, à falta de melhor nome, Barroco.