As Conversas são o registro das discussões e reflexões que acontecem durante as reuniões do grupo. Acontecimentos, temas, autores, teorias e conceitos geram e ganham movimento, contribuindo para o conhecimento conjunto e compartilhado.

22 de setembro de 2015


O  flamenco possui origens nas culturas cigana e mourisca que há muito tempo se adaptaram à região da Andaluzia, na Espanha. O flamenco é dança e ritmo, é letra, ou seja, possui ligação com a poesia, com a música, com a instrumentação. Trata-se também de uma dança complexa, que tem que ver com o movimento dos pés, das mãos, com o vestuário. Ele veio para a América Latina e teve trânsito com todos os ritmos daqui:  rumba, salsa, tango e também com os ritmos do nordeste do Brasil.

Na Espanha há uma quantidade enorme de ritmos e derivações do flamenco, sendo algumas mais conhecidas, como Soleá e Sevilhanas, por exemplo. Ao mesmo tempo, há aqueles flamencos que foram caracterizados por um cantor, uma cantora, um compositor, um bairro: Trianeras, canto típico do bairro de Triana, em Sevilha, onde havia cafés e bares onde muitos jazzistas tiveram a oportunidade de conhecer e de se interessar pelo flamenco.

Quando se escuta alguém interpretando o flamenco, é toda a vida, o passado e os bairros da cidade que se acumulam naquela voz. E isso não tem nada que ver com o fato de querermos escutar um cantor por por "gostar dele".

“Se vocês escutarem um tango bem tocado e não sentirem o peito estremecer, dediquem-se a outra coisa”, disse um maestro de tango – pois não se trata de apenas gostar da música ou de admirar a técnica ou o "experimentalismo" de certa criação.
É importante notar que, por mais que um ritmo possa ter nascido em um lugar, pode criar conexões em atmosferas onde o ambiente seja propício. Ele se cria e recria em lugares onde encontra combinações, onde ganha força expressiva.

Na música flamenca encontram-se poesias de grandes poetas espanhóis, sendo um dos mais conhecidos Antônio Machado, poeta modernista espanhol do fim do século XIX e início do XX.

Muitos músicos veem a criação musical fundada apenas na habilidade individual, na capacidade da própria banda. Só que a técnica tem que participar da criação e não se separar dela, a técnica precisa ajudar a descortinar o que Federico Garcia Lorca chama de duende, num texto famoso chamado “Teoria y Juego del Duende”.

Garcia Lorca critica a aristocracia espanhola através de uma escrita barroquizante. Ele fala do duende como algo popular. Manuel Torres, cantador de música flamenca entre os séculos XIX e XX, observou certa vez um cantor de flamenco e lhe disse: “Você tem voz, você conhece os estilos, mas nunca vai triunfar entre nós porque você não tem duende”. Lorca diz que “em toda Andaluzia, as pessoas falam constantemente do duende e o descobrem quando têm o seu instinto eficaz”. Fala de alguns cantadores espanhóis e diz que a força do duende é expressiva nos cânticos deles. Cita também Manuel de Falla: “Tudo o que tem ‘sonidos negros’ tem duende." Os "sonidos negros" se movimentam pelo Oriente, pelo Mediterrâneo, pela Península Ibérica, pela América Latina, são mistérios que as pessoas conhecem ou ignoram, mas que percebem e praticam. Por isso os espanhóis gostam muito dos chamados "cantes de ida y vuelta", pois são ritmos que vêm da Espanha para a América Latina e para lá retornam.

“‘Sonidos negros’ é esse poder misterioso que todos sentem e que nenhum filósofo explica.” “Assim, pois, o duende é um poder e não um trabalhar, é um lutar e não um pensar.” Depois que se aprende isso, começa-se a evitar o modismo, pois, vê-se que nele não há duende. O duende não tem que ver com demônio, mas é diferente da musa e do anjo. “O anjo e a musa vêm de fora, ao contrário, o duende, é necessário despertá-lo, acordá-lo, nos últimos aposentos do sangue.”

A cantadora espanhola Pastora Pavón Cruz, conhecida como “La Niña de los Peines”, cantora do povo, cantava com uma técnica esplendorosa. Lorca conta: “Pastora Pavón terminou de cantar; em meio ao silêncio, sozinho e com sarcasmo, um homem pequenino, desses homenzinhos bailarinos que saem de repente das garrafas de aguardente, disse com voz muito baixa: 'Viva Paris', como se quisesse dizer: aqui não nos importa a faculdade, nem a técnica, nem a maestria, nos importa outra coisa. Então ‘La Niña de los Peines’ se levantou como uma louca, quebrada como uma carpideira medieval, tomou de um trago um grande copo de aguardente como fogo e se sentou para cantar sem voz, sem alento, sem matizes, com a garganta abrasada, mas com duende.”

E continua Garcia Lorca: “‘La Niña de los Peines’ teve que dilacerar sua voz porque sabia que estava sendo escutada por gente deliciosa que não pedia formas, mas ‘tutano’ de formas. Música pura com o corpo enxuto para poder manter-se de pé no ar, sua voz já não brincava, sua voz era um jorro de sangue digno de seu ‘dolor’ e de sua sinceridade, e se abria como uma mão de dez dedos pelos seus pés pregados, mas cheios de tempestades de um Cristo de Juan de Juni.”

“A chegada do duende pressupõe sempre uma mudança radical em todas as formas sobre planos velhos, dá sensações de frescura totalmente inéditas com uma qualidade de rosa recém-criada, de milagre que chega a produzir com um entusiasmo quase religioso.”

No tango isso é comum. No tango tocado com o acordeom, se o indivíduo não conseguir transformar esse instrumento em algo como o "peito", como o "coração", ele pode tocar tango bem, mas faltará algo diferente, faltará o duende. Isso vale também para a poesia. Há poetas que sabem lidar com as rimas, mas é necessário sentir a presença do duende. Todavia, de alguma maneira, o conhecimento estético, numa luta contra a luta o sentimentalismo vazio e a emoção, adotou um rumo experimentalista. O experimentalismo se desenvolveu na Europa, muito fortemente nas vanguardas, na Europa central principalmente, até na Rússia, tendo em vista o que eles chamaram de crise de linguagem, que gerou uma crise de representação. O problema é querer estender essa crise de linguagem e de representação para todas as partes do mundo. Há muitos lugares no mundo que nunca tiveram esse problema.

O problema da representação é um problema da tradição ocidental, da cultura ocidental. Suas causas são uma série de eventos combinados, que podem ser descritos da seguinte maneira: a razão iluminista, ela própria, ao querer imaginar um mundo representável pela razão, já começa a preparar a sua derrocada; o crescimento excessivo das cidades burguesas, regidas por enorme aparato de convenção (Roy Wagner ajuda a elucidar essa questão); as duas guerras mundiais mataram aproximadamente 200 milhões de pessoas e seus efeitos não estão relacionados somente com tais mortes, mas ao fato de que, para se organizar, a Europa central teve que abandonar o resto do mundo e considerá-lo secundário, acidental, pouco humano, como resto residual; em seguida, organiza-se um grande aparato, a grande aparelhagem de comunicação midiática digital como forma de controle dos povos. Nos EUA, as guerras mundiais, as guerras de invasões e a Guerra Fria levaram os artistas, já desde as vanguardas históricas, à necessidade de experimentar as linguagens como forma de sair da crise de representação.

A Península Ibérica não participou disso, na medida em que podemos ver que, ao se falar de vanguardas históricas, nuca se menciona a Espanha, pois o que havia na Espanha era a geração de 1927, que tinha como figura mais importante Gabriel Garcia Lorca. Jorge Guillén, poeta, crítico literário e cronista espanhol, amigo de Lorca, disse em um artigo que a Espanha não tinha nenhum problema com a linguagem, que a Espanha não tinha problemas com o passado, não tinha, portanto, que abolir o passado, ao contrário, tinha que fazer o passado vigorar no que se escrevia, daí os grandes livros de Lorca, como o "Romancero Gitano" – as pessoas se amam com a tradição cigana e árabe. Compare-se isso com o que acontecia na França, na Itália, na Inglaterra e na Rússia. Mas o que aconteceu, então, no processo de desenvolvimento do capitalismo mundial? Por que essa sanha experimentalista veio para o Brasil? Por que foi vitoriosa no Brasil?

O experimentalismo teve no Brasil os nomes dos concretos Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos. Eles escolheram como paradigma Jakobson e não Tinianov, já que ambos não possuíam a mesma visão. Por que Tinianov não teve a mesma consideração que Jakobson? Tinianov se interessava por uma cadeia complexa de relações entre os textos e séries que o impedia de considerar como mais importantes ou revolucionários apenas aqueles autores experimentalistas da linguagem.
Tinianov era muito ligado às coisas da cultura para que os concretistas o admirassem. Qual era o paideuma deles? Stéphane Mallarmé, poeta e crítico literário francês que promoveu uma renovação da poesia na segunda metade do século XIX; James Joyce, romancista, contista e poeta irlandês, considerado um dos autores de maior relevância do século XX; e T.S. Eliot, poeta modernista, dramaturgo e crítico literário inglês, todos europeus. Eles não se interessavam pela América Latina. Até hoje, a produção de arte poética em São Paulo é dominada pelos concretos, a exemplo dos centros de cultura, como a Casa das Rosas, por exemplo. No jornal “O Estado de São Paulo”, de 22 de setembro de 2015, foi publicado pelo jornalista Humberto Werneck um artigo que recupera um pouco dessa discussão. Ele descobriu uma carta/resposta de Paulo Mendes Campos a Décio Pignatari, da década de 1950, e escreveu a partir dela um artigo que chamou de “Sopapos Literários”. Esse artigo de Werneck trata de uma briga através de cartas entre Paulo Mendes e Décio, e fala da "belicosidade dos arautos da nova ordem poética", que eram os concretos. Paulo Mendes Campos escreve: “Você acha, entre muitas coisas, que estou enganando o povo brasileiro, possíveis leitores, no banho mole das considerações emocionais, que só os livros, e de modo nenhum a vida, podem habilitar-nos a distinguir entre bons e maus poetas.” Os dizeres “só os livros e não a vida” têm que ver com os concretos, que nunca se interessaram por Garcia Lorca, pois ele nunca procurou poemas especialmente diferentes na forma, algo que os concretistas chamavam de poesia de invenção. Continuando a carta: “Com uma poética ‘casa e jardim’ engordando de grossura esse infeliz povo brasileiro.” Paulo Mendes Campos se refere à ideia de um Brasil culturalmente pobre. E a carta diz ainda: “Arte é forma, um pensamento do primeiro formalismo; arte é estrutura dinâmica, essa era uma ideia, é claro, da estrutura como movimento, relação de formas, que lendo os grandes, Mallarmé e Joyce, é que se pode conceber o que é o humano e não lendo os pretendentes bastardos colaterais ao trono da poesia cordial do tipo 'somos todos irmãos', esses miseráveis impostores, que em língua portuguesa há somente algo de Sá Miranda, tudo de Fernando Pessoa e João Cabral, começando em 'O engenheiro' e terminando antes de 'O rio', Drummond, menos em uma porção de coisas, Mario de Sá Carneiro, Camões, que Mario de Andrade tinha visão universal, mas que se arruinou na sua consciência aberta a tudo. Só os jovens negam e afirmam com essa sereníssima empáfia. Eu não daria importância à sua carta se ela me parecesse um fenômeno isolado, parte de um triste equívoco, estado de espírito, que anda muito espelhado em certos grupos de jovens e intelectuais brasileiros, um estado de espírito que nasceu de um intrincado complexo colonial. Vocês pecam antes de tudo e primariamente é contra a cultura que reclamam nos outros e proclamam em si mesmos, em seguida, o substrato da atitude de vocês é uma frustração diante da realidade, uma incapacidade de incorporar o Brasil às leituras mal assimiladas de certos expoentes de literaturas estrangeiras, incapazes de pensar como o Brasil, dentro do Brasil.”

Haroldo se afastou um pouco disso (desse experimentalismo das vanguardas europeias históricas) ao se interessar por poetas e escritores latino-americanos (Lezama, Vallejo, Girondo etc.) e escrever textos tais como "Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura Brasileira". Na verdade Haroldo combina experimentalismo e antropofagia a la Oswald.

Sobre o seu "Romancero gitano", Lorca disse em Prólogo que não era poeta apenas por emoção e pela importância cultural do tema, mas também por muito aprendizado, leituras e técnica. Há aí mescla entre técnica e emoção "com duende". Há um artigo de Lorca sobre Gôngora, onde Garcia Lorca diz assim: “Quando se entra numa floresta e se observa suas maravilhas não se pode escrever sobre tudo, deve-se ter a capacidade de selecionar sobre o que se irá escrever. Nas minhas conferências falei às vezes da poesia, mas da única que não posso falar é de minhas poesias, não que eu seja inconsciente do que faço, ao contrário, se é verdade que sou poeta pela graça de Deus, ou do demônio, também o é por que sou pela graça da técnica e do esforço e de dar-me conta de maneira absoluta do que é um poema.”

Reparemos que na Casa das Rosas e em outros lugares há inúmeros colóquios e apresentações sobre experimentalismo em literatura. O experimentalismo é interessante, o problema, no entanto, é torná-lo um fim em si mesmo. O que parece ter acontecido é o concretismo ter produzido uma teoria muito boa, porém com uma produção poética não equivalente. Existe uma base arcaica de poesia concreta e visual e Haroldo de Campos nos mostra isso – a poesia visual capta a "coisa". Por outro lado, existe um experimentalismo da cultura. Haroldo de Campos cita Antônio Candido: “Havia em nosso meio aquilo que se poderia chamar de uma congenialidade em relação aos novos experimentos”. E que não se explica pelo processo de industrialização desencadeado em centros cosmopolitas como São Paulo. Antônio Candido elucida o fenômeno e Haroldo o cita (e foi interessante tê-lo citado, uma vez que eram "inimigos uspianos", dessas coisas assim desinteressantes): "No Brasil, as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana, ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente." Isto é, somos umbandistas e do candomblé, e ambos estão presentes em nosso cotidiano, onde frequentam católicos, espiritualistas e outros. "As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles." Portanto, que experimentalismo é esse que precisa de Mallarmé e Joyce?

 

 

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