Ricardo 
                                                                 
                                                                Certo  dia, algum dia, no balcão de uma sobreloja onde trabalhei como vendedor, estava  emitindo algum documento ou conferindo alguma coisa e percebo um vulto chegando  à minha frente. 
                                                                Como bom vendedor, larguei tudo e assumi uma postura ereta e  disponível. 
                                                                O Cliente era um assombro, no verdadeiro sentido da  expressão. Alto, algo assim como um metro e noventa, espadaúdo, terno azul  claro, muito bem talhado. A camisa, com belas e discretas abotoaduras, um rosa  claro com os punhos fora da manga do paletó, na medida certa, só podia ser  feita também sob medida. A gravata azul, de seda pura, com bolas brancas, laço  bem feito, meio inclinado, tipo nó italiano que os elegantes usavam na época.  Os sapatos pretos, seguramente importados, reluziam no brilho fácil de um cromo  alemão. Postura de poste, firme e altaneiro, caminhando seguro sem olhar os  pés, mas à vontade, demonstrando estar habituado à elegância natural. O cabelo  negro, farto, negligentemente despenteado de propósito. O riso fácil mostrava  os dentes perfeitos, simétricos, grandes, branquíssimos. Cara boa, tez queimada  de sol. Ombros largos e atléticos.   
                                                                  Como homem comum, confesso que até eu fiquei impressionado e  aprumei-me mais um pouco, tentando não ficar muito pra trás. 
                                                                “Bom dia” (voz sonora, perfeita, grave, distinta, no tom  certo, educada)! “O senhor pode dar-me uma informação, por gentileza” (num  português perfeito)? 
  “Claro, com muito prazer”, respondi tentando uma voz que  nunca tive. 
  “Por favor, o Piller está?” (O José Piller foi um dos melhores  vendedores que conheci). 
  “Não, não está. Está visitando Clientes. Posso ajudá-lo?”, esnobei. 
  “É só com ele. Somos amigos de infância, jogamos juntos no Corintinha do Piqueri e há tempos não  nos vemos...” 
  “Se quiser deixar algum recado... qual é o seu nome?” 
  “Não, deixa! Pelo nome ele não vai lembrar de mim.” 
  ‘Mesmo assim, qual é o seu nome?” 
  “Não, deixa. Venho outro dia.” 
  “Mas, qual é o seu nome?”, insisti. 
  “Ricardo.” 
  “Ricardo de que?”, insisti novamente. 
  “Ricardo do Amaral Peixoto Gouveia de Castro Junqueira.”  Disse sem arrogância, naturalmente. 
  “Desculpe o comentário, mas com um nome desses, o Piller vai  ter que lembrar, sim.” 
  “Não, não vai lembrar, não! Deixa, então! Outro dia que der  passo por aqui.” 
  “Ôcha, amigo”, apelei. O amigo quase parou a loja. “Tem que  ter um jeito do Piller lembrar-se.” 
                                                                  Enrubesceu, respirou fundo, resignado: 
                                                                “Tá  bom, então! Diz pro Piller que o Polenta esteve aqui...”
 
 
                                                                Chico Cuencas 
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