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Você, realmente, queria escolher essa cor?

A escolha do consumidor parece ser
o mais opressor problema no atual capitalismo.
Renata Salecl

            No Brasil, a cada ano, morrem 30.000 pessoas em acidentes de trânsito. Isso significa uma média de 83 pessoas mortas por dia. Se realmente nos importássemos com a morte no trânsito, a cada três dias deveríamos acordar espantados e gritar: “Tivemos um atentado como aquele que houve em Madri!” Todos nós ficamos estarrecidos, emocionados até as lágrimas, quando soubemos da barbárie cometida nos trens espanhóis. Mas, a cada três dias, nós temos a ‘nosso Madri’ no trânsito, e ele passa totalmente despercebido. Parece que somente no macroatacado a morte faz efeito na sociedade, prévia intervenção da mídia que nos diz quando devemos chorar. As campanhas sobre a mistura letal de álcool e trânsito parece não estar tendo muito efeito. Aliás, é muito comum, nas segundas-feiras escutar os grandes comentários, entre muitas pessoas jovens, de quanto beberam no último final de semana. Claro que, certo ou exagerado, cada um deles conta a sua façanha alcoólica, com o intuito de superar o outro e merecer grandes elogios por ‘ter apagado’, chegar ‘tribêbado’ em casa etc. Esse paradigma conversacional é o que abunda nos papos juvenis, por exemplo, nos corredores universitários às segundas-feiras. Tanto homens quanto mulheres consideram-se totalmente integrados, no grupo etário e na sociedade, graças ao uso desmedido de álcool. Parece que o mundo pós-moderno, dentre outros paradigmas, exige a condição para se pertencer a um grupo, que seus integrantes compartilhem a façanha da ingestão desmedida de álcool.

            Em um artigo publicado pela revista Isto é (14 de fevereiro 2007, edição 1946) aparece uma estatística estarrecedora: “No Brasil, um estudo feito com 1.385 vítimas fatais de acidentes de trânsito, no Instituto Médico Legal de São Paulo mostrou que 42,8% delas haviam ingerido álcool em excesso”. Umas décadas atrás, qualquer um que bebesse muito deveria tentar ocultar a sua situação para não ser punido com o isolamento ou a crítica.  Hoje, muitos jovens para pertencer, para serem aceitos pelo grupo, não podem rejeitar nem as drogas nem o álcool. Talvez por isso ‘a nossa Madri’ não faça parte do repertório mental-especulativo da sociedade atual. Ou será que devemos duvidar do Q.I. daquele que, após beber durante horas, pega o carro e vai embora rumo à sua casa com uma arma tão poderosa e, além disso, brincando de roleta russa, mas com a vida dos outros também? Eu acho que o Q.I. não pode ser posto em dúvida, pelo menos o intelectual. Então, o que acontece com esse tipo de comportamento, que é incentivado, e até elogiado pelos outros? Parece que se trata de uma apologia ao suicídio inconsciente (o artigo mencionado acrescenta que as “vítimas apresentaram uma média de 1,78 gramas de etanol por litro de sangue, volume três vezes maior do que é permitido pelo Código de Trânsito”).

            Começamos esta reflexão com a questão do trânsito, talvez o sintoma mais evidente nestes dias caóticos na cidade de São Paulo. E por falar da articulação com o outro, podemos pensar que há nesta cidade nove milhões de carros circulando, mas dessa quantidade, nada menos que seis milhões de carros sempre estão ocupados somente por uma pessoa. Carona solidária? Tô nem aí! Hoje mais do que nunca fica evidente que o carro, no imaginário de uma grande parcela da população, potencializa o ego. Portanto, se alguém se submeter a dar carona para outra pessoa, estaria se instaurando um conflito narcisista: ou o outro ou eu. Não há lugar para dois, até porque seria um clima propício para o diálogo, a reflexão, ou seja, uma abertura para um outro. 

            Talvez poderíamos pensar que também tudo o que é reprimido, suprimido e/ou negado em termos conscientes, no mundo simbólico, volte no real – parafraseando uma lei da psicanálise que trata dos psicóticos - e por isso o tema da morte recalcada, apagada, silenciada, volte no pior dos planos: no mundo físico, da realidade. Não nos damos oportunidade de refletir sobre a finitude humana, sobre a nossa fragilidade, sobre o nosso comum destino. Então, quiçá a única alternativa que temos, socialmente, é encenar a morte. O trânsito, o álcool, as drogas e a satisfação imediata com impossibilidade de suportar frustração, são elementos norteadores de uma sociedade que não está disposta a aprofundar nesse tema tão caótico e desagradável: a existência da morte. Perante a perda de um objeto amado, não deve mediar nenhum impasse, nenhum compasso de espera, para saber realmente o lugar que ocupava em nosso mundo psíquico o objeto perdido. Não é de bom tom fazer um trabalho de luto. O que se deve, sim, é substituir imediatamente um objeto por outro. Acabou o namoro? Não se preocupe porque há outras discotecas onde você pode ter, como garantido, pelo menos, que não vai embora sem ter beijado bastante. Faça estatística! 

            Morreu seu cachorrinho? Não se preocupe que conheço um vizinho que a cadela dele teve cria. Amanhã trago outro cachorrinho para você. Não precisa ficar triste.  Viagens e compras de perfumes e de sapatos são os antídotos para toda e qualquer angústia de viver, além da fluoxetina e da paroxetina.

            Entretanto, não há como fugir da morte. O trânsito pode ser um dos comportamentos sociais que indicam que alguma coisa de muito errada existe entre nós. Proliferam as caminhonetes, como se, em uma grande cidade, facilitasse o trânsito o fato de dirigir um veículo enorme, de preferência de cor negra e com os vidros polarizados... Um verdadeiro tanque de guerra movimentando-se pelas ruas. Se no interior também vai um cachorrinho meigo, carinhoso, tipo pitbull, então melhor ainda. Pareceria que cada um quer sair às ruas com o maior veículo possível. Aliás, neste mundo pós-moderno o único que as pessoas competem para ter de menor tamanho é o celular...

            As condições econômicas da sociedade não ajudam porque, se não for assim, logo veríamos os pequenos empresários, comerciantes e até funcionários do último escalão de uma firma, indo aos seus trabalhos com um caminhão Scania. Pareceria que o ego está supervalorizado não só com o tipo de veículo que se dirige, mas também com as atitudes que se têm nas ruas. Se meu carro é maior que o seu, então eu tenho prioridade de passo. O outro que se vire. Não é problema meu. Novamente pergunto se faltaria Q.I. para que um motorista não diminua a velocidade, por exemplo, quando chegar no final de uma rua? A paranóia é um outro paradigma da nossa sociedade pós-moderna. Nosso semelhante é um perigo de tal magnitude que devemos estar com a agressividade [na flor da pele], sempre disposta, pronta para dar o bote. Nossa onipotência poderá resistir até uma batida tremenda? Somos invulneráveis pelo fato de recalcar, negar a presença da morte?

            Estamos falando do trânsito, e talvez seja interessante refletir sobre outra característica melancólica que se articula com o carro: a escolha. Parece que interrogar o próprio desejo tem caído em desuso, porque os carros que circulam pela cidade são pretos, brancos ou prata. Temos orgulho de dizer que o Brasil se caracteriza pela diversidade de cores, aromas, perfumes que são produtos da terra e da miscigenação de várias culturas. Entretanto, somos muito tristes no trânsito. Não adianta nada o conselho dado por um ou outro especialista: a cor preta concentra o calor de maneira excessiva, muito mais que outras cores. Seria a pior escolha para comprar um carro.  Além do mais, todo mundo sabe que os ladrões de carros nunca roubam um carro que seja facilmente identificável, como por exemplo, de uma cor chamativa ou com muitos adesivos. Podemos imaginar a transcendência que poderia ter a mensagem veiculada pelo sistema interno de rádio da polícia, informando que acabou de ser furtado um veículo de cor preta.... Por isso, no momento de escolher seu novo carro, por favor, ajude os senhores delinquentes: compre um carro de cor preta, cinza ou branca para que seja impossível identificar e assim garantir a fuga deles em paz! 

            Pesquisando um pouco mais o assunto, sempre se afirma que se fosse de uma outra cor, que não essas três mencionadas, seria muito difícil de vender. Muitas pessoas ainda nem compraram o carro, mas já estão pensando em vendê-lo, mesmo que saibam que é o pior investimento, porque, quando sai da agência o carro já está amortizado em, pelo menos, trinta por cento do seu valor de mercado. Mas, esse é o jeito que elas têm para lidar com os objetos: de maneira sempre transitória.

            Podemos pensar que nós temos muita inveja dos objetos e que, independentemente de que a vida útil muito curta de um objeto seja um requisito do mercado para poder vender as unidades produzidas, podemos pensar também que a nossa inveja dos objetos se deve a que eles nos anunciam que somos de uma frágil finitude. Quantos objetos podemos olhar ao nosso redor, em nossa casa, que permanecerão após a nossa morte? 

            Gerações anteriores se caracterizavam por receber de herança algum objeto dos entes amados. Isso servia como memória da vida dos nossos antepassados, como uma forma de tributo. Os objetos que se transmitem para os descendentes têm o poder, como bem lembra Rubem Alves, de tornar presente uma realidade ausente. Os objetos nos servem, também, para mostrar a nossa castração. Eles sobrevivem à nossa existência. Os cachimbos que estou olhando, neste momento, na minha escrivaninha, é muito provável que perdurem por muitos anos após minha morte. 

            Como o lema atual é que somos o que queremos ser (estilo Nike), então para sermos seres autogerados, devemos apagar toda e qualquer marca de memória. Apagamos as marcas da memória pessoal, familiar e social. Se não for assim, não poderíamos acreditar no lema perverso de poder ser o que desejamos. Interessante pensar que o mercado oculta a continuação desse sintagma, faz uma elipse, porque seremos o que desejamos ser sempre e quando seguimos as leis mercadológicas que a mídia nos indica diariamente. Seja o que você quiser, mas isso será verdade se você optar pelas escolhas que nós, do mercado, temos feito para você. Até hoje não conheço uma pessoa que tenha comprado um carro azul marinho porque, simplesmente, é a sua cor favorita... ou porque lhe faz lembrar do mar do nordeste, a região em que passou a sua infância. A escolha depende do mercado, ou seja: sem verdadeira escolha. Mais um paradoxo do mundo em que vivemos. 

            Talvez, hoje mais do que nunca, vigorem os conceitos que Freud desenvolveu no seu artigo sobre “Psicologia das Massas e Análise do Eu”(1920). Procuram-se marcas de identificação para criar grupos que permitam apaziguar o conflito que se instaura, quando se defrontam com as diferenças. Identificado com um grupo determinado, todos os que forem diferentes devem ser rejeitados e, segundo o grupo, combatidos. É muito provável que Baumann esteja certo quando articula o conceito de “Mixofobia”: medo de se misturar. Para isso estão os condomínios fechados, precisamente porque o outro é um perigo. Não vai demorar até que a publicidade ofereça uma casa em condomínio fechado, exaltando a sua característica principal: é o único condomínio que tem exatamente o mesmo sistema de segurança máxima usado em Bangu I e Bangu II. Vai vender como água!

            Lidar verdadeiramente com um outro significa aceitar as diferenças e, isso pode servir para rever os posicionamentos narcisistas que temos, ou seja,  corremos o perigo de até aprender que poderíamos mudar, enriquecer-nos internamente com a visão do outro. Entretanto, se ninguém solta facilmente um sintoma, também ninguém gosta de mudanças. Todos igualados, mas por baixo.

            Contardo Calligaris (1991) tem um interessante ensaio em que ele é provocado pelo trabalho de Hannah Arendt. Lembremos que esta pensadora ficou estarrecida quando comprovou que muitos dos depoimentos que fizeram os criminosos de guerra nazistas, com motivo de seu julgamento no Tribunal de Nüremberg, após a finalização da Segunda Guerra Mundial, consistiam simplesmente em afirmar que eles não tinham nenhuma responsabilidade perante o massacre de judeus porque eles tinham sido “bons funcionários que somente cumprem ordens”. O fato de tentar se eximir da responsabilidade que cabe a todo sujeito, argumentando que simplesmente faziam parte de um sistema e que eles obedeciam a ordens, como qualquer funcionário público fez com que Contardo Calligaris aprofundasse uma reflexão que ele mesmo começou em 1988, a respeito da perversão social. A leitura desse artigo nos permite pensar que talvez o mundo pós-moderno se caracterize por fortes rasgos que podemos definir como perversão social.

            Podemos resumir este grande paradoxo do mundo pós-moderno com as palavras da socióloga eslovena Renata Salecl que afirma: “Embora as pessoas sejam constantemente lembradas a fazer de si mesmas o que querem, estão na verdade seguindo os ideais de padronização”.

            Talvez a lei fundamental da psicanálise seja que o sujeito se faça responsável pela sua escolha. Por isso, se em termos sartreanos estamos condenados a escolher, porque até quando nos eximimos de escolher, isso não deixa de ser uma escolha, então quiçá valha a pena que tenhamos uma escolha ‘plena’ em vez de ficarmos apagados como sujeitos em pós de um imaginário que se sustenta, mediante o mercado e que muitos assinam embaixo, sem terem lido com atenção, nem sequer as letras grandes e muito menos as pequeninas do grande contrato de viver.

Prof. Dr. Claudio César Montoto
PUC-SP

cmontoto@ig.com.br

 

 
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Edição Nº 29
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