A maravilha da transformação
Por diversas vezes presenciei em sala de aula situações que me remetiam à minha infância. E isso havia se tornado algo quase que corriqueiro sempre que era chamada para dar aulas numa turma da Universidade Aberta à Maturidade, PUC-SP, onde havia sido necessário juntar classes para completar o número de alunos necessários para compor uma turma. Quando a gente entra numa sala assim de cara, percebe-se que algo de grave aconteceu. É impossível não notar, pois parece que estamos diante de dois rios que correm paralelamente, cujas águas insistem em não se misturar. Muitas vezes a coisa ficava tão complicada que já vi representante de turma adoecer, entrar em crise, e é pressão que sobe diabetes que descompensa, aquela velha dor adormecida que acorda, enfim, o caos.
Mas o surpreendente é que estamos diante de adultos, na sua grande maioria mulheres – muitas mães, tantas avós e até algumas poucas bisavós. Como é possível que pessoas maduras, que já enfrentaram tantos problemas sérios na vida e os resolveram, pois chegaram até aqui, de repente entram em crise porque sua turma vai mudar?
Como pode uma colega, só pelo fato de ter iniciado o curso numa outra turma, tornar-se uma inimiga, se nem sequer, ainda, é conhecida? Contra quem estão na realidade brigando, então? Com ela, a nova colega? É certo que não! Meu Deus, de onde vem tanta animosidade? Quem foi que disse que aquele lugar onde se costuma sentar todo santo dia de aula se tornou nosso? E coitada da colega que ousar sentar-se “nesse” lugar! Por que precisamos tanto ser donos, em especial, daquele lugar? Será que não basta sermos donos de nós mesmos e olhe lá?
Todo mundo quando volta a sentar-se num “banco” escolar, vira aluno, aquele aluno que um dia já foi, daquele mesmo jeitinho. Mas o ontem passou. Como ser, então, aluno hoje, maduro, trabalhado pela vida, sabedor já de um monte de coisa que aprendeu com a vida, mas sabedor, mais ainda, que tem um montão de coisas fascinantes ainda para aprender? O mais comum é, ao invés de encararmos esse aluno de hoje, irmos lá dentro resgatar o aluno que já se foi certa vez, numa outra época, onde tudo era diferente – professora, colega, escola, cidade, hábitos, métodos, livros etc.
Trazemos, assim, para sala de aula das Universidades Abertas à Terceira Idade, ou Maturidade, em geral, aquele personagem que não vem sozinho, mas acompanhado de toda a sua vivência como estudante no passado, o que inclui experiências boas e outras tantas ruins. Não importa, deve-se peneirar tudo, guardar as boas, jogar as ruins fora e prosseguir na construção de um novo personagem, pronto pra estudar e, sobretudo, trocar.
Talvez se a gente focasse no presente e não buscasse o passado, daria conta de criar esse novo personagem capaz de olhar para os lados e “ver” os novos colegas exatamente como são: seres humanos iguaizinhos a nós mesmos, cheios de anseios, de medos, de dificuldades, mas com uma vontade imensa de aprender, de melhorar, de trocar, de crescer. Às vezes, aquele “novo” colega estava precisando tanto ser acolhido exatamente como o fomos, também, mas estávamos tão preocupados com o nosso umbigo que nem percebemos.
Quantas vezes se traz para a sala de aula as dificuldades que se vive em casa. Foi difícil abrir essas dificuldades para “minha” turma? Como é que, agora, vamos sentir-nos à vontade com tanta gente estranha? Mas até há bem pouco tempo o pessoal da “sua” turma era estranho também, lembra? Não devemos ter vergonha de falar das coisas que nos incomodam. Se “estou” sofrendo posso compartilhar esse sofrimento com as pessoas próximas. E quem pode ser mais próximo do que os colegas, muitos até da mesma idade, que encontramos duas vezes por semana, com quem compartilhamos tantas descobertas sobre o mundo e sobre nós mesmos? Mais do que dar uma chance para o outro, precisamos dar uma chance para nós.
A gente costuma tratar os outros como tem o hábito de se tratar. Vejo, portanto, que está faltando um pouquinho de tolerância. Não estou falando daquela tolerância passiva de quem não soube impor os próprios limites e, de tão cansado de ser invadido, resolveu se trancar. Falo da tolerância dinâmica, de alguém que está disposto a se aceitar como um ser humano e que ao se aceitar, assim, cheio de defeitos e qualidades, sabe-se em processo, em crescimento, em evolução e pode conceder aos demais, especialmente, aos “novos” colegas em questão, a oportunidade de nos encontrar mais abertos, com a guarda baixa, para que se possa, quem sabe, começar um relacionamento maravilhoso, como tantos que já tive a oportunidade de acompanhar. Novos relacionamentos exercitarão os nossos limites, possibilitando, inclusive que sejam mudados, sempre que for necessário e nos transformar numa pessoa mais aberta, mais dada, mais gostosa, mais autêntica.
Lidar com o novo traz a insegurança de, de repente, poder encontrar no meio dessa história toda um novo “eu”. E não tem nada que ponha mais medo na gente do que a gente descobrir-se viva, pronta pra mudar na hora que quiser. Mas são tantas as desculpas que arranjamos pra justificar a não mudança! Quem não exercita esse jogo-de-cintura, que não só garante a cintura mais fina, mas o cérebro e todo o corpo mais flexível e saudável, corre o risco de cristalizar e de adoecer.
Como é maravilhoso a gente se dar o direito de ser alguém em constante transformação!