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A Senioridade nos Terreiros de Candomblé

Lá, no Gantois, morava uma senhora de
porte realmente majestoso, a quem nós, garotos,
de acordo com as regras de boa educação,
tomávamos a “bênção”, tanto ela estivesse na
categoria dos “mais velhos”.
Cid Teixeira

 

Babalorixá do Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá e Ebômi Anita de Oxun

Maria Escolástica da Conceição Nazareth, a legendária Mãe Menininha do Gantois, foi empossada no posto de ialorixá aos 28 anos de idade, no dia 18 de fevereiro de 1922. É a ela que Cid Teixeira se refere numa lembrança da década de 1930, e, embora ainda estivesse longe de atingir uma idade avançada, por seu porte altivo e dignidade, já estava inserida na categoria dos “mais velhos”, inspirando respeito a ponto de lhe tomarem a bênção.

Mãe Menininha esteve à frente do Gantois por mais de seis décadas. Morreu no dia 13 de agosto de 1986, aos 92 anos, e vive até hoje na memória de todo o povo da Bahia. Sua história de vida comprova que os terreiros de Candomblé dispõem de um código de conduta muito particular, no qual regras bastante rígidas, impostas por uma tradição milenar e típica dos que viveram a diáspora, determinam os comportamentos, delimitam os espaços e delegam autoridade a pessoas que se encontram em categorias específicas de hierarquia e poder.

A propósito, quando Andréa Lopes, ao apresentar o livro Velhice e diferenças na vida contemporânea, fala da constituição do envelhecimento como uma categoria social legítima, cujo estudo requer uma abordagem multidisciplinar, em razão inclusive de diferentes combinações de condições de renda, saúde, idade e de acesso a oportunidades, nos instiga a saber, com base em exemplos práticos, de que modo se dá a construção histórica e cultural dessa categoria num grupo concreto, neste caso, nos terreiros de Candomblé.

Ao longo de quase quatro séculos de escravidão, aportaram neste país reminiscências religiosas de diversas partes da África Negra. O grupo étnico denominado nagô ou iorubá foi um dos últimos a chegar, num momento em que já prevalecia o infame comércio ilegal, ou seja, o tráfico de escravos. Por esta razão, esse grupo pôde preservar alguns traços culturais, especialmente no que se refere à religião, com muita fidelidade à sua terra de origem, influenciando de maneira decisiva na organização dos primeiros terreiros e mesmo nos rituais de outras etnias.

Entre as categorias específicas de hierarquia e poder, a dos “mais velhos” é, sem sombra de dúvidas, a de maior prestígio, afinal, trata-se de uma religião calcada nos princípios de senioridade e ancestralidade, na qual a idade, como fator preponderante na aquisição de conhecimento, torna-se sinônimo de autoridade e força.

No dizer dos Candomblés tradicionais “idade é posto”. Sendo assim, o lugar ocupado por alguém na hierarquia dos terreiros, isto é, o seu cargo, pode variar em seu grau de dignidade conforme a idade do postulante, o que, na prática, significa que quanto mais velho, mais alta e prestigiada a função de uma sacerdotisa ou sacerdote.

Esta idade, no entanto, não está relacionada apenas ao tempo cronológico, apesar de tratar-se de um importante indicador a ser considerado na compreensão da velhice. O Candomblé é uma religião iniciática. Logo, o dito tradicional também se refere ao tempo de iniciação, inferindo que todo o aprendizado adquirido ao longo dos anos, bem como a memória, as vivências e todos os saberes transmitidos pelos “mais velhos” são determinantes na construção da autoridade e na manutenção do poder.

Valorizar a experiência e o conhecimento dos mais velhos é algo comum em diversas culturas, mas no Candomblé idade é ainda sinônimo de saber. Portanto, numa religião de transmissão oral, com fundamentos que remontam a um passado longínquo e com rituais tão particulares, se idade e saber não caminharem juntos não há poder que se estabeleça. Nas palavras de Michel Foucault, “não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder” e, como estamos diante de um segmento social em que existem relações de poder vinculadas a um saber, cabe observar em que medida a categoria dos “mais velhos” se insere nessa lógica.

Infere-se, pois, que, nos terreiros de Candomblé, “saber é posto” e entender a categoria dos “mais velhos” nesta religião e, sobretudo, de que forma estão imbricados idade, senioridade, poder e saber, é uma tarefa complexa. No entanto, a dificuldade para explicar não reside na resolução de uma equação aparentemente simples, qual seja: idade igual a saber igual a poder, mas nos significados isolados de cada elemento e nas nuanças que vão adquirindo na prática de uma religião repleta de mistérios.

Dessa forma, não se trata apenas de responder por que os mais velhos são tão valorizados nos terreiros a ponto de formarem uma categoria específica, haja vista que o processo de envelhecimento não é uniforme ou único para todos os indivíduos (Boaretto, Gusmão, 2006: 21). É necessário esclarecer o que significa envelhecer no Candomblé e se, via de regra, todos os velhos realmente se enquadram nessa categoria, percebendo se há algum tipo de exclusão e, neste caso, a que se deve. Em outras palavras, é preciso observar como se configuram as representações da velhice no interior dos terreiros.

Voltando à trajetória e ao curso de vida de Mãe Menininha, emblemáticos embora não sejam únicos, vale ressaltar que sua fama e poder correram o mundo e, ao longo dos 64 anos em que liderou o Gantois, teve a seus pés pessoas simples e muito humildes, mas também artistas, intelectuais, chefes de Estado. Acometida por doenças bastante graves, que lhe mantiveram presa a uma cama por mais de uma década, ainda assim conseguiu comandar os destinos de seu terreiro com sabedoria e autoridade. Nesse sentido, o Candomblé parece contrariar a lógica vigente, que relega os mais velhos ao isolamento e à exclusão quando em situação debilitada.

Mãe Menininha é o típico exemplo do idoso que supera suas dificuldades, inclusive físicas, de maneira singular e com dignidade. Clássica expoente da categoria dos “mais velhos”, cumpriu um papel social de protagonista, tornando-se quase um paradigma para seus pares e emprestando um novo significado às agruras da velhice, uma vez que, nos terreiros de Candomblé, alguns sinais da idade são propositalmente exacerbados como forma de legitimar o poder do sacerdote.

No Candomblé, o envelhecimento é sempre um ideal a ser atingido. Até mesmo determinados elementos, como improdutividade, declínio físico e morte iminente, que constituem o modelo (negativo) de velhice socialmente sugerido, nos terreiros passam a ser valorizados à medida que aproximam os “mais velhos” da ancestralidade – princípio sagrado e fonte de poder nesta religião.

Cada sociedade ou grupo constrói seu mundo a partir de determinados parâmetros; portanto, o significado de ser velho nos terreiros de Candomblé é muito diferente daquele vigente no imaginário da grande maioria das pessoas. As idéias de perda e degradação física e social, como ensina Maria Helena Vilas Boas Concone, não têm, nesse caso, nenhum valor. Sendo assim, nessa religião as características da velhice e do envelhecimento podem ser um modelo de vivência integrada e valorizada, atribuindo àqueles que chegaram à categoria dos “mais velhos” um status privilegiado que deveria servir de exemplo à sociedade brasileira como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERZINS, Marília Anselmo V. da Silva; MERCADANTE, Elisabeth Fröhlich. Velhos, cães e gatos: interpretação de uma relação. In: Velhice e diferenças na vida contemporânea. São Paulo: Editora Alínea, 2006.

BOARETTO, Roberta Cristina; GUSMÃO, Neusa Maria. Políticas públicas e velhice: reflexões sobre velhos que vivem nas ruas. In: Velhice e diferenças na vida contemporânea. São Paulo: Editora Alínea, 2006.

CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Medo de envelhecer ou de perecer? Revista Kairós, v. 10, p. 19-44, 2007.

LOPES, Andréa. Velhice, heterogeneidade e a dança dos esquisitos. In: Velhice e diferenças na vida contemporânea. São Paulo: Editora Alínea, 2006.

 

Rodnei William Eugênio
Sociólogo
mestrando em Gerontologia pela PUC-SP
Babalorixá do Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá
rodneywilliam@ig.com.br



 
 
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