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QUEM GUARDA SE GUARDA

Memória sempre foi um tema que muito me interessou. Como geriatra aprendi que a idade em si não altera a memória, algumas doenças, sim! Mas na prática, na convivência com os meus muitos alunos das Universidades Abertas à Maturidade – PUC, Uni Sant’Anna e, mais recentemente, Campos Salles - percebi que as pessoas não só aceitam as alterações de memória como “fazendo parte natural do envelhecimento”, como esperam pelas falhas dela que, certamente, segundo elas, vão acontecer. Tenho uma avó de 92 anos que com sua memória fabulosa, confirma que a ciência tem razão. Então, que história é essa da ciência afirmar algo e a vivência da maioria das pessoas dizer outra?

Lá fui eu garimpar os porquês. Para tanto, me dispus a discutir o tema Memória nas muitas turmas das Universidades onde trabalho e nos dois grupos de estudos que criei – um aqui mesmo em São Paulo e outro na minha cidade, Paraisópolis, sul de Minas Gerais. O ponto crucial que detectei atrapalhar a memória é o fato das pessoas serem rígidas, terem pouco conhecimento e aceitação de si, fato que transforma o conceito de memória em um baú enferrujado, cheio de coisas velhas, aonde vão se acrescentando, ao longo dos anos, mais e mais dados, que por não serem revistos periodicamente, vão tornando o baú pesado, confuso e trabalhoso. E só de pensar em abri-lo e organizá-lo, já se desanima. Se tem uma coisa que é atual, moderna, dinâmica e revolucionária é a memória. Portanto, é esse o conceito que precisa ser mudado.

Para que temos memória? Para vivermos o hoje, não para ficarmos no ontem. O ontem já passou e deve servir apenas como ponto de referência, para que a gente possa se rever de tanto em tanto, para avaliar o tanto que evoluiu e que ainda falta evoluir. Se ficamos no ontem, atrelados às coisas do passado, deixamos de viver o hoje e não damos espaço para a nova pessoa que nos tornamos a cada novo aniversário. Em algum lugar do passado nos ensinaram que não poderíamos mudar, pois correríamos o risco de sermos desacreditados. “Eu sou assim, e pronto!”, a gente costuma ouvir. Pois eu digo o contrário: que a gente se permita mudar muito, deixar fluir novas facetas nossas para as quais nunca demos espaço ou nunca tivemos condições e/ou oportunidade, para que sejamos sempre pessoas atuais e não cristalizadas no “nosso tempo”. Como diz sempre sabiamente o Prof. Jordão: “O nosso tempo é agora!”.

É claro que é maravilhoso termos um passado, termos histórias para contar. Mas como diz Gabriel Garcia Marquez no seu livro autobiográfico, é preciso “viver para contar”. E viver no hoje para ter o que contar amanhã é estar presente, contando com uma bagagem atualizada, pronta para nos ajudar a “funcionar” bem na vida. E o importante, tendo em mente que queremos ser livres para sermos quem somos, é que consigamos dar conta de carregarmos a nossa bagagem. Se os anos tornam-nos mais frágeis fisicamente, possibilitando-nos carregar uma bagagem cada vez menor, que a gente se fortaleça emocionalmente, guardando dentro de nós – e aí, sim, bem guardado – aquilo que é essencial.

Lembrei-me agora de uma música que cantávamos no colégio na minha adolescência: “fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas”. Eu diria: nossa alma fica perfumada e nosso coração abastecido quando conseguimos extrair e vivenciar o sentido da vida, sem precisarmos ancorá-lo e escondê-lo nas coisas. A flor pode morrer, mas a lembrança do seu perfume dentro de nós fica para sempre! Se precisamos da flor para nos lembrarmos do seu perfume é porque nunca incorporamos a sensação despertada pelo seu perfume, nunca o sentimos como um pouco nosso também.

Talvez o exercício mais difícil de fazermos na vida seja nos desapegarmos das coisas. As coisas não têm vida própria, são apenas coisas! Nós é que damos a elas um sentido e atrelamos a elas nossas pendências emocionais. Posso ter objetos que me sejam úteis, mas devo evitar transformá-los em âncoras e desculpas que me atrapalhem viver. O que vivemos está dentro de nós. Memória é muito mais emoção do que razão. A razão entra apenas em cena para organizar os dados segundo critérios próprios, para garantir eficiência e prontidão. Mas quem disciplina, foca e determina o que deve ser guardado é a vontade do coração. E damos tão pouco espaço para ele, coitado, que deixamos de guardar aquilo que realmente nos importa e passamos a guardar coisas que mais sustentam uma imagem, do que quem somos de verdade. Quem guarda se guarda e não deixa os sentimentos fluirem, permanecendo presos nas coisas, sem viver as emoções que essas mesmas coisas estão ali a simbolizar.

Semana passada uma aluna da Uni Sant’Anna contou-nos uma história em aula que ilustra bem o que quero dizer. Ela é baiana e anos atrás batizou o filho de uma irmã, mas morando aqui em São Paulo ficou muito tempo sem ter contato com ele. Certo dia recebe o convite do sobrinho, já moço, para o seu casamento. Preparou um vestido bonito para a festa e viajou. Ao chegar lá, ouviu do sobrinho a maior declaração de amor, quando comentou com a noiva que ela, a noiva, era a terceira mulher da vida dele. A primeira era a mãe e a segunda, sua madrinha. Minha aluna ficou surpresa com aquela revelação. Não sabia que era tão querida! Voltou para São Paulo e guardou o vestido no armário, que passou a simbolizar o amor da sua família que ela, distante, não estava podendo desfrutar. Pensou no que poderia fazer por si além de simplesmente guardar aquele vestido. Resolveu, então, tomar uma atitude: programar-se para viajar todo ano para a sua terra para rever seus familiares. O que poderia ser mais importante do que o amor? E o vestido? Perdeu o sentido, pois tinha cumprido a sua tarefa: mantê-la alerta sobre a vida que estava perdendo. Outro alguém pode usá-lo agora.

Os objetos guardados - aqueles que de certa forma tornam-se um peso e dos quais não conseguimos nos desapegar – lembram a gente dos momentos intensos de vida que a gente um dia viveu, mas que podemos ainda, e sempre, nos permitirmos viver. Mas não vamos fazê-lo se não nos desenroscarmos do passado e de “um eu que um dia fui e que não sou mais”.

E por que a memória da minha avó é tão brilhante? É simples, tão simples como ela! Minha avó não é uma pessoa ligada em coisas, mas em pessoas. Convive bem com todos, pois sabe respeitar e impor limites. Aceita críticas, mas não se deixa abalar pelos comentários alheios, porque sabe muito bem quem é. Concentra sua atenção na própria vida, nas próprias necessidades, naquilo que é importante para estar bem – em resumo: cumpre o seu compromisso com a vida que é cuidar bem de si! É compreensiva, sensível, interessada, lê, reza e trabalha todo dia. E não fica chorando sobre o leite derramado. Ao contrário, tenta não derramá-lo da próxima vez e alerta as pessoas em volta para evitarem fazê-lo também. E o mais importante: está sempre pronta para se entregar de corpo e alma aos desafios que a vida vem lhe proporcionar.

Que a gente se inspire, então, nessas duas mulheres danadas e, ao invés de nos guardarmos da vida, ousemos vivê-la. É isso que a memória em forma simboliza: a aceitação da vida e das mudanças que ocorrem dentro e fora de nós sem sofrimento, porque a essência do que somos os anos só fazem aprimorar. Não precisamos de tantas coisas, precisamos é de nós, livres, leves e disponíveis para quem de nós possa precisar.


Dra. Alda Ribeiro
Geriatra e Gerontóloga
draldaribeiro@yahoo.com.br



 
 
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