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As pessoas e as palavras

Todos os dias, vemos milhares de pessoas que circulam pelas ruas. Não sabemos quem são, para onde vão, de onde vêm. Às vezes, paramos em algum ponto de ônibus ou em uma fila qualquer, e alguém entediado com a espera puxa conversa. Se gostamos, continuamos o papo, ou então, fazemos que não é conosco. Poucos são os que, entretanto, param para observar que o indivíduo que deseja conversar e o seu interlocutor têm algo em comum: a linguagem.

A linguagem, essa magnífica ferramenta que nos une, permite que nós nos comuniquemos. É por meio desse poderoso instrumento que nos expressamos: elogiamos, conversamos, trocamos ideias. Mas não é só de palavras que a linguagem é feita. Podemos pintar, fotografar, esculpir, enfim, podemos produzir diversos tipos de atividades que não estão obrigatoriamente ligados à fala. Nós as classificamos como manifestações de linguagem não verbal.

Das atividades de linguagem verbal que produzimos, temos a fala e a escrita. As manifestações orais nos são apresentadas desde o nosso nascimento. Um bebê nasce e logo estamos dizendo: "Bebezinho lindo" ou "Olhe a mamãe!". Crescemos ouvindo e sendo instigados a nos manifestar por intermédio da fala. Depois que crescemos, ela nos parece tão natural que não nos apercebemos de sua importância.

Assim, primeiro percorremos nosso caminho de linguagem em contato com a língua oral; depois, aos poucos, somos apresentados a uns desenhos estranhos, as letras, e aprendemos que, quando combinadas, elas formam as palavras. É por meio delas que damos nomes às coisas e começamos a registrar impressões do mundo que nos cerca. Se na oralidade as palavras parecem servir ao nosso propósito comunicativo de forma fluida, a escrita, por outro lado, demanda treino, paciência e a observação de regras do idioma: o caminho da leitura e da produção textual nem sempre parece fluir suavemente.

Quando em contato com a escrita, é comum ouvirmos de alunos do ensino fundamental, médio e até superior, que a língua portuguesa é difícil. Pois não é a mesma língua a que falamos e a que escrevemos? Entretanto, as pessoas que se referem à dificuldade da comunicação com o português não estão pensando em suas atividades orais cotidianas. De fato, estão associando a língua portuguesa à norma padrão, muitas vezes, distante daquilo que produzimos em nossa fala. Tal distanciamento reflete-se no aprendizado diário. Recentemente, perguntei aos meus alunos o que gostariam de desenvolver em sala de aula. Uma das respostas que obtive foi: "Quero escreve melhor." Por que tal aluno omitiu a letra r do verbo em questão? Porque raramente reproduzimos o r quando falamos os verbos no infinitivo. Procure pronunciar fielmente as seguintes palavras – amar, receber e intuir – e verá como fica difícil reproduzi-las na fala como as escrevemos.

Damos pouco valor à expressão oral, que nos acompanha cotidianamente. Se retomarmos a noção saussuriana de palavra, que o mestre assumia como signo, veremos que ela é composta tanto por aquilo que ela quer dizer, quanto pela combinação de suas letras e a sonoridade por elas criada. À exceção dos linguistas, poucas são as pessoas que observam a beleza e a rapidez com que esse processo de escolha e combinação se dá. Por que será, então, que tendemos a julgar a linguagem oral cotidiana pelo viés da norma padrão?

Em seu processo evolutivo, o homem falou antes de ter a capacidade de escrever. Tanto a fala quanto a escrita têm sido importantes para a construção de nossas culturas (quando digo isso, penso nos vários grupos sociais que se espalham pelo planeta); entretanto, é comum que os falantes de português assumam que não sabem o próprio idioma. O que ocorre é que alguns de nós talvez ainda não o dominemos (e creio que isso nunca ocorrerá porque a língua não é estática; está sempre se manifestando de modos distintos). Uma das variantes que temos em sociedade é o padrão culto escrito, geralmente utilizado em algumas esferas de atividade, tais como as escolas, as instituições financeiras ou de ensino superior, tribunais e outros locais que exigem o uso dela. É interessante observar que as últimas pesquisas realizadas pelos sociolinguistas do projeto NURC (Projeto Norma Linguística Urbana Culta) vem demonstrando que, ao falar, mesmo indivíduos de alta escolaridade adotam variedades linguísticas distintas da norma padrão escrita.

O fato de acharmos que não temos pleno domínio do padrão culto escrito não quer dizer que desconheçamos nosso idioma. Talvez, sejamos menos versados em uma de suas variantes, o que não nos faz melhores ou piores do que ninguém. Conforme dito anteriormente, tanto as produções orais quanto as escritas têm seu valor. O que não podemos é dizer coisas como "não sei português" ou "o português é difícil", baseando-nos no padrão culto, que é uma das variações da língua. Afinal de contas, se não soubéssemos nosso idioma, como haveríamos de bater papo na fila do banco?

Mônica Éboli De Nigris
Profª Drª em Linguística e Semiótica

 

 
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Edição Nº 29
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