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À mesa (Fome crônica)

 

À mesa (Fome crônica)

Por Rosely Aparecida Daltério*

"Pão é amor entre estranhos."
Clarice Lispector

A história é um prato cheio para quem tem fome de vida, para quem crê na variedade de sabores, para quem quer provar saberes, para quem deseja mais do que comida. Para quem seguiu todas as receitas e para quem jogou fora o manual de cozinha. Para quem fez o prato com os restos de todas as festas, para quem comeu o pão amassado pelo diabo. Para quem pagou o pato (como laranja). Para quem esqueceu de acrescentar o fermento e o bolo não cresceu. Para quem sempre teve faca, queijo e mão. Para quem só teve a fome como herança, patrimônio de sobras. Para quem é especialista em especiarias. Para quem só entende do arroz-com-feijão. Para quem sabe rimar ambrosia com poesia. Para quem é adepto do frango com polenta. Para quem preparou, com açúcar e afeto, o doce predileto de seu dileto bem. Para quem deixou o leite esparramar. Para quem entornou o caldo. Para quem chorou e, ainda assim, não mamou. Para quem foi precocemente desmamado. Para quem ficou chupando o dedo. Para quem frequenta todas as xepas. Para quem lambeu os beiços e o prato. Para quem comeu e não gostou. Para quem aprendeu a assoviar e chupar cana. Para quem tirou leite de pedra. Para quem armou o coreto e preparou aquele feijão preto. Para quem vive cozinhando a vida em banho-maria. Para quem furou a fila do buffet self-service. Para quem foi fritar bolinhos. Para quem descascou todos os abacaxis. Para quem só comeu comida congelada. Para quem tem se virado (à paulista). Para quem não teve o nome na lista. Para quem teve de lavar os pratos para pagar a conta. Para quem mandou às favas as normas de etiqueta. Para quem vive um faz de conta: "um dois, feijão com arroz, três quatro, feijão no prato...". Para quem brincou de casinha e fez comidinha. Para quem tem alguém para quem cozinhar, lavar e passar. Para quem tem o que cozinhar. Para quem assa biscoitinhos nos tristes trópicos, pensando nas madalenas de Proust. Para quem é cozinheiro de mãos-cheias e armários supridos. Para quem só come prato feito. Para quem vive de cesta básica, cartão-alimentação, vale-refeição, vale-gás, para quem nada vale e muito pesa, nas contas dos economistas e seus cálculos governamentais. Para quem reincidiu no hediondo crime de roubar para comer. Para quem sempre resistiu, nunca se dobrou, para quem não soçobra. Para quem só vive de aperitivos. Para quem está sempre de dieta. Para quem não sabe a diferença entre diet e light. Para quem se apresenta como gente de bem, arrota certezas e se acha coberta de razão. Para quem parte e reparte e fica sempre com a melhor parte. Para os que recebem tudo, de colher e de bandeja. Para quem é bom garfo. Para quem a obesidade é sempre mórbida. Para quem a extrema magreza é padrão de beleza. Para os gordofóbicos eufóricos, que se alimentam de drogas lícitas e preconceitos cultivados a pão-de-ló. Para quem é adepto da comida de boteco. Para quem não come a carne e sequer pode roer os ossos, disputados nos caminhões coletores de lixo, um novo "reality show", para espectadores ávidos de diversão. Para quem só ficou com o circo, na falta do pão. Para quem vive de remorso, cada vez que se pesa. Para quem controla as calorias. Para quem controla as massas. Para quem é bom de bico. Para quem vive de migalhas. Para quem se sustenta em pé, embora tenha a barriga vazia. Para quem se lambuza em iguarias. Para quem come com os olhos e lambe com a testa. Para quem come e se arregala porque nunca se acaba o que é doce. Para quem se farta em todas as mamatas, juntando a fome de poder com a vontade de comer. Para quem engorda a estatística da insegurança alimentar – 19 milhões e aumentando. Para quem sabe que o que engorda também mata. Para os donos das "commodities", bem acomodados à mesa dos poderosos, sempre prontos para todos os banquetes oficiais. Para quem come, pelas bordas, a esperança e o futuro.

 

*Publicação selecionada e publicada no livro "Crônicas da fome", do Instituto Fome Zero, páginas 37-8, Brasília, DF: Coletivo Subplano, 2022.

 

 
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