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A vida, a arte e o atelier de Ninetta Rabner

Por Célia Gennari

A nossa divertida entrevistada é Ninetta Salfatis Rabner, 69 anos, com quem fizemos uma viagem no tempo, através de sua história artística e de vida. Sua obra é apresentada em seu ateliê de uma forma inédita, onde através de suas pinturas, cadernos e desenhos, temos a oportunidade de conhecer seu ofício de quase 50 anos.

Ninetta Salfatis Rabner nasceu na Grécia em 1948 e veio para o Brasil aos 6 anos de idade. No começo foi difícil a adaptação para a menina, seu irmão e seus pais. No caso dela, que não tinha sido alfabetizada nem em grego, ter que se relacionar com uma nova língua foi mais complicado.

Na década de 50, “ser estrangeiro era ser estranho” e o nome da Ninetta dificultou muito a socialização, especialmente na escola, onde as crianças gozavam (bullyng da época), e os professores reforçavam com indagações do tipo: “Ninetta? Que nome é esse?”

Para ajudar, Ninetta veio de uma família tradicional, onde os homens podem tudo e as mulheres, praticamente, não podem nada. Para quem já tinha dificuldade na escola, pior era não poder sair com amigos e se divertir, coisa que todas as meninas de sua idade faziam. Os gregos no Brasil conviviam muito entre si, numa sociedade à parte, e depois de alguns anos criaram uma mentalidade diferente da dos brasileiros e até dos próprios gregos que moravam na Grécia.

Durante seu desenvolvimento na escola, o que mais atraia a menina Ninetta era o grupo da bagunça, porque era um lugar onde ela podia extravasar. Resultado? Cabulava aula, fugia da escola e até repetiu de ano. Por ser levada, seus pais acabaram tirando-a do Mackenzie onde estudava e a colocaram numa escola americana, semi-interna (período integral). Mais um grande momento de dificuldade, pois agora todas as matérias (matemática, física, química...) eram dadas em inglês. Outro recomeço: adolescente, grega, estudando numa escola americana... Na época, para piorar, os professores da instituição, em sua maioria, eram americanos, e faziam diferença entre os alunos americanos e brasileiros, pois ser brasileiro ali era ser estrangeiro. Então, naquele local, Ninetta era considerada duas vezes estrangeira!

No entanto, foi nessa escola que começou a sua história com a arte, pois o professor de artes era brasileiro, filho de americanos. Com o apoio do Mister Ostergren, que falava português, Ninetta, aos 13 anos, começou a gostar de arte. O professor a incentivava e a fazia sentir-se feliz pintando e desenhando.

Ao final do colegial, Ninetta já estava decidida a estudar Artes Plásticas. Foi quando descobriu que o diploma da escola americana só era reconhecido nos Estados Unidos. Teve de fazer revalidação de diploma, com exames de português, gramática, história e geografia do Brasil.

Com o novo diploma em mãos, Ninetta, atrás do seu sonho, foi fazer cursinho perto de sua casa, na USP da Rua Maria Antonia. Mas quando seu pai reconheceu pela televisão o cursinho que sua filha frequentava sendo invadido e seu diretor preso, imediatamente insistiu em tirá-la de lá. Isso foi no final dos anos 60!

Enquanto não foi possível estudar, trabalhou por dois anos numa empresa americana como secretária bilíngue. Depois, finalmente, ingressou num curso livre na Escola Panamericana de Arte, tendo como professor o artista plástico Walter Lewy.

Aos 24 anos (1972) Ninetta casou-se e na lua de mel comentou com seu marido sobre a faculdade que gostaria de ter feito. E, com seu apoio e incentivo, no ano seguinte ela já estava na FAAP e um novo momento de sua história teve início. Falaremos sobre ele através de perguntas e respostas:

Jornal Maturidades - Como a sua família viu esse seu movimento em direção à arte?

Ninetta Salfatis Rabner – Meu pai comentou na época que não tinha percebido que eu queria tanto fazer Faculdade de Artes Plásticas. Ficou muito sensibilizado e fez questão de bancar todos meus estudos de faculdade. Não é que ele não queria me deixar estudar, ele tinha medo da situação, em país estrangeiro e do que poderia acontecer. Foi para proteger. As barreiras que tive foram sempre pela questão da preocupação de meus pais, por eu ser mulher. Meu irmão, três anos mais velho, não sentiu nada do que eu senti. Era outro foco, porque no conceito deles o homem podia fazer tudo, enquanto que a mulher não. E para complicar mais a minha vida, ele era bom aluno (risos). Hoje minha mãe, com 95 anos, vem frequentemente me visitar no ateliê. Sente muito orgulho pelos obstáculos que ultrapassei.

JM – Como foi esse novo momento na sua vida?

Ninetta – Foi um mundo novo. Achava que poderia me sentir velha em frequentar faculdade aos 24 anos de idade, mas fui consciente. A mistura de idades da turma de 100 alunos foi “a menina dos olhos” dos professores. No segundo ano escolhi Licenciatura em Educação Artística, na época o curso mais completo e que abrangia as matérias que mais me interessavam. Fiquei encantada pela faculdade e por tudo que fazia por lá.

JM – Faculdade, família, como foi conciliando?

Ninetta – Tive meus dois filhos enquanto cursava a faculdade. Havia grande espírito de solidariedade naquela época. Professores e amigos de turma me visitavam com frequência no período de licença maternidade, traziam a matéria e fazíamos trabalhos em casa. Enfim, consegui conciliar a maternidade e os estudos sem nenhum problema. Foi muito especial.

JM – O que o curso superior ofereceu aos alunos?

Ninetta – A FAAP tinha um espaço maravilhoso, as instalações, as prensas, o material, os professores... Grande parte dos professores é hoje artista plástico consagrado. Para citar alguns exemplos, tive excelentes professores com Evandro Jardim (gravador e pintor), Nicolas Vlavianos (escultor e desenhista), grego, com quem muito me identifiquei e Ubirajara Ribeiro (aquarelista e gravador).

JM - O que foi chamando mais a sua atenção durante o curso?

Ninetta – “Tivemos pinceladas em diversas áreas e eu aproveitava tudo aquilo com muito entusiasmo. Eu gostava muito da aula de desenho com a artista plástica Teresa Nazar Vlavianos, uma das minhas incentivadoras para seguir Licenciatura em Educação Artística. Aulas igualmente excelentes de história da arte, pintura, escultura, gravura, fotografia, teatro... O curso de licenciatura era o mais completo, de quatro anos, e eu não queria que acabasse. Foi tudo muito especial. A conclusão aconteceu em 1977.

JM – A partir da formatura, que caminhos você trilhou?

Ninetta – Quando acabei a faculdade teve uma exposição de alunos na FAAP. Essa foi a minha primeira exposição. Meu primeiro filho já tinha três anos e o segundo tinha acabado de nascer. No ano seguinte da formatura fizemos uma sociedade entre quatro amigas para trabalhar com decoração de arte em paredes. A ideia era entrar com a escolha de quadros ou esculturas depois que a decoração da casa fosse concluída. Nós faríamos uma curadoria e instalação nas paredes das obras selecionadas. Era moda na época, em Nova Iorque, e acreditamos que teríamos chance de trabalhar com esta ideia inovadora no Brasil. Ficamos um bom tempo entrevistando professores, artistas plásticos, criando arquivos, fotografando, slides... A sociedade criada parecia ideal, pois nos mantinha em contato com o meio artístico, frequentávamos exposições, museus, ateliês, nos incentivávamos a continuar pintando, desenhando, criando... E foi aí que surgiu a ideia de começar a participar de exposições. Infelizmente os planos foram interrompidos. A sócia mais organizada da turma – centralizava todos nossos arquivos – teve sério problema familiar, a outra mudou de cidade e eu também acabei mudando para a Granja Viana. O foco mudou totalmente e, mais uma vez, um ciclo se encerrava e nova fase de vida se iniciava. Mas daqueles tempos tenho gratas lembranças. Havia uma exposição anual dos artistas da Granja Viana (existe até hoje), com a renda revertida para a Casa de Apoio, entidade filantrópica. Sempre gostei de participar de grupo de estudos. Formamos na Granja um grupo de artistas onde nos apresentávamos tanto individualmente quanto em exposições coletivas. Participei também em duas exposições em Paris, França.

JM – Fale mais das exposições.

Ninetta – Há uns 20 anos, voltamos da Granja Viana para São Paulo e com isso vieram novos desafios, quando comecei a frequentar novos grupos de estudo em São Paulo. Tenho contado com a orientação dos artistas plásticos Sergio Fingermann, Evandro Carlos Jardim, Silvia Mecozzi e Jacqueline Aronis durante vários anos, todos especialmente excelentes. Venho desenvolvendo uma poética pessoal que transita entre a abstração e a figura com base muito forte no desenho. Percebo quão grega sou, quando aparecem como referência sempre imagens/temas de construções, monumentos, ruínas, pedras, evidenciando a grande influência da minha cultura e dos meus mestres no meu universo criativo. Fiz recentemente duas exposições onde apresentei grande número de trabalhos. As exposições são desafios que me mantém ligada ao ofício e à responsabilidade de estar sempre buscando novos caminhos. Tenho uma obra no Museu da Imaginação, um museu dirigido para crianças, com um andar dedicado a exposições de arte. Fui convidada a participar de um evento inédito: uma homenagem aos 60 anos do Tratado de Roma. O Consulado Francês convidou artistas plásticos de cada um dos 28 países que compõem a União Europeia. Com muito orgulho representei a Grécia, pintando, ao vivo, uma parte da bandeira. Cada artista tinha um cavalete e uma tela à disposição e em duas horas tinha que elaborar algo que remetesse a seu país. Foi maravilhoso. Um evento incrível. Essa bandeira irá rodar o mundo.

JM – Atende a solicitações?

Ninetta – Sim. Participei de uma exposição individual no Club Paulistano, onde a proposta dos curadores, Bel Lacaz e Sergio Scaff, era apresentar várias séries de diversas épocas. Acabou dando um caráter de retrospectiva que resultou na publicação de um catálogo. Participei também, recentemente, de uma exposição no clube A Hebraica e a proposta do curador, Olívio Guedes, era que fossem trabalhos grandes. A escala do trabalho interfere naquilo que você está fazendo, até na pincelada. Gosto de desafios, eles te impulsionam a procurar novos caminhos.

JM – Qual era seu sonho pós-formação?

Ninetta – Ter um ateliê. Tive um, pequeno, na Granja Viana no terraço de minha casa, mas não consegui usá-lo por muito tempo. Há uns 4 ou 5 anos surgiu uma nova oportunidade de ateliê com o lançamento de um empreendimento que tinha como grande chamariz vista para um parque. Abrir a janela e olhar um jardim pelo terraço era um sonho, que foi se alimentando. Após 2 anos, quando o empreendimento ficou pronto, percebi que as árvores do parque eram mínimas e que só estariam crescidas depois de muitos anos. Foi uma decepção...

JM – Qual a história da descoberta do seu atelier?

Ninetta – Em meados do ano passado, comecei a idealizar uma casa numa vila como ateliê. Percebi que havia perdido o controle da quantidade dos meus trabalhos. Não tinha como guardar todas as obras em casa: empilhadas, enroladas, algumas no teleiro sem serem vistos, outras na mapoteca, mais escondidos ainda. Senti a urgência de organizar tudo aquilo que havia construído por tantos anos. Procurei muito. Um dia lembrei-me de ter visto uma foto de uma vila muito pitoresca no bairro de Higienópolis. Fui à procura e pela sorte do destino, depois de alguns dias de expectativa, concretizei meu sonho – uma casa numa vila! É onde estou hoje. Era para ser aqui.

JM – Como foi montar o novo espaço?

Ninetta – Foram 50 anos de trabalho. Afinal, desde antes da faculdade eu já pintava e tenho trabalhos guardados desde aquela época. Levei uma quantidade enorme de telas, desenhos, gravuras, livros, cadernos que eu nem lembrava ter em minha residência. Quando espalhei tudo pelo ateliê, fui invadida pelas lembranças do tempo percorrido, das minhas memórias. Desvendei histórias, senti o espaço, o ambiente, o clima e a relação que estava se criando entre todos estes trabalhos do passado até o presente. Passei um dia inteiro separando, contemplando, selecionando, relacionando, com recordações à flor da pele, empolgada com a ideia que eu poderia, com liberdade total, montar as paredes, preencher os espaços, deixar no teleiro o que eu achasse importante, carregar a mapoteca com desenhos de várias épocas, tudo organizado do meu jeito, com minha identidade. Foi um dia inesquecível!

JM – Qual o sentido das suas obras?

Ninetta – Ao longo dos anos, fui realmente criando várias séries em diferentes momentos da vida. Conforme a época e o que acontece no meu cotidiano, no meu país, no mundo, na minha família, meu trabalho é influenciado. É como se fosse um termômetro de sentimentos, acontecimentos bons e ruins. Começo a pintar uma série e ela segue até onde meu interesse se mantém ligado naquele momento que a desencadeou. Tem uma hora que se esgota, dá um vazio e, sem planejar, um novo acontecimento me influencia, e me faz encerrar aquela série e seguir outro caminho. As obras falam por si. Você trava uma luta, uma angústia, uma insegurança durante o processo de criação. Você se dedica ao seu trabalho (porque é realmente um trabalho), às vezes por horas e horas sem resultado algum, e de repente você sente uma sensação indescritível de conquista, às vezes de transcendência. Isto é o grande privilégio do processo criativo!

JM – Como se sente?

Ninetta – Tenho recebido muitas visitas no ateliê e me surpreendo como cada pessoa se aproxima dos trabalhos de forma diferente. É um privilégio compartilhar a experiência de ver as pessoas se envolvendo, tentando entender, se identificando com o conteúdo, se transportando para dentro do meu mundo de ilusão. Um dos grandes objetivos do artista é tentar passar para o outro estes sentimentos, transmitir algo que o faça divagar pelas próprias experiências de vida. Sinto-me realizada por ter conseguido atingir um objetivo que persegui por vários anos. É a primeira vez que possuo um espaço onde percebo que é a extensão do meu ser e que está me dando a oportunidade de sentir mais intensamente o significado da presença da arte em minha vida. A possibilidade de estar no ateliê e poder apresentar meu trabalho como um todo, passar pelas minhas memórias, sentir momentos vividos através das pinturas, mostrar minha identidade, é realmente uma experiência singular.

JM – Qual é o seu momento agora?

Ninetta – Hoje vivo um momento muito especial! Meu marido, meus filhos, juntamente com minhas noras, são meus maiores incentivadores para que eu continue nesta minha jornada. Tenho quatro queridos netos que se encantam quando vêm ao ateliê e pintam e bordam à vontade!

O passado é forte, mas o presente é instigador. Ninetta continua com seus sonhos e a se emocionar toda vez que abre a porta e mostra um pouco de si para cada visitante. “Sinto orgulho por ter percorrido esta caminhada, persistido em momentos difíceis, conquistado espaço neste turbilhão de dúvidas e questionamentos. Todo recomeço é um novo desafio, uma nova aventura. É um sentimento muito grande, que vem de dentro, da alma, e fico feliz em fazer parte desse universo da arte tão especial e único.”

E assim terminamos uma parte dessa história, com Ninetta Rabner e seu depoimento “em arte” sobre o que acontece ao seu redor e no mundo. Aproveite as imagens e viaje com suas criações.


 
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